Racing, um campeão em tempos de crises

Racing, um campeão em tempos de crises

As coincidências de um clube que ganha títulos durante épocas difíceis para a Argentina

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O futebol é repleto de superstições e coincidências incríveis, ainda que, em grande parte das vezes, fatos ocorridos dentro das quatro linhas e fora dos estádios não tenham a menor correlação. Em alguns casos, chega a ser absurda a hipótese de um acontecimento extracampo interferir no resultado de uma partida.

Mesmo sem base para construir argumentos empíricos a respeito do assunto, o que não faltam são torcedores jurando de pés juntos, e beijando os escudos de seus amados clubes, que determinado episódio exerceu influência direta sobre os atletas e alterou os destinos de um jogo – ou até mesmo de uma nação inteira.

Um exemplo apropriado para retratar essa cultura futebolística eu ouvi recentemente, quando estava conversando com um colega hermano. Na Argentina, ele me contou, existe o folclore de que o Racing de Avellaneda é o “campeão das crises” devido à fama que possui de conquistar títulos durante épocas adversas para o país.

O veterano Diego Milito esteve nas conquistas de 2014 e 2001 (Foto: Divulgação/Racing)
Ídolo, o veterano Diego Milito esteve nas conquistas nacionais de 2014 e 2001 (Foto: Divulgação/Racing)

2001

Se a Nação passa por grandes dificuldades, em resumo, “La Academia” é campeã. Foi assim em 27 de dezembro de 2001, quando o time alviceleste superou na última rodada a concorrência do River Plate e faturou o título nacional ao empatar com o Vélez Sarsfield, encerrando um incômodo jejum de 35 anos sem ganhar taças.

No entanto, a definição do campeonato poderia ter ocorrido somente no ano seguinte, já que a Argentina estava afundada na pior crise econômica de sua história. A situação era tão complicada que houve inclusive a renúncia do presidente Fernando de la Rúa, representante do partido da União Cívica Radical.

Em parte, essa instabilidade teve origem na política iniciada durante o mandato do presidente Carlos Menem, em 1991. A princípio, o modelo adotado pelo membro do Partido Justicialista teve resultados efetivos, porém começou a mostrar falências em 1997, gerando aumento da dívida externa e fuga de capitais.

Ao assumir o governo em 1999, em meio à recessão, De la Rúa deu continuidade à política de seu antecessor. A situação tornou-se insustentável em dezembro de 2001, quando o ministro da Economia, Domingo Cavallo, para combater a saída de dinheiro do sistema bancário, anunciou restrições ao retiro de depósitos.

A medida gerou bastante impopularidade, sobretudo na classe média. Vários protestos e saques a supermercados ocorreram, levando o presidente, no dia 19, a decretar estado de sítio em todo o território nacional. Apesar do regime de exceção, as ruas se encheram de manifestantes, que acabaram reprimidos.

Em 20 de dezembro, as pessoas voltaram a ocupar as vias públicas. Já à noite, De la Rúa renunciou e fugiu de helicóptero da Casa Rosada, sede do Poder Executivo. Nestes dois dias, houve 38 mortes em decorrência da violência das forças policiais e de segurança, sendo que nove das vítimas eram menores de idade.

Este era o cenário em que vivia o futebol argentino. O Racing, em especial, encontrava-se numa situação bastante delicada. Em julho de 1998, o presidente do clube, Héctor Daniel Lalín, apresentou um pedido de falência da instituição, cujas finanças passaram a ser administradas, em decisão judicial, por Liliana Ripoll.

Em 3 março de 1999, no mesmo dia em que a Justiça havia ordenado a imediata liquidação de todos os bens da agremiação, Ripoll anunciou que a Racing Club Asociación Civil deixara de existir em função das dívidas astronômicas. Desta maneira, o time estava impedido de estrear no Torneo Clausura diante do Talleres, de Córdoba.

Embora a equipe estivesse impossibilitada de entrar em campo, aproximadamente 30 mil torcedores, num gesto incrível de paixão, foram ao Estádio Estádio Juan Domingo Perón, também conhecido como “El Cilindro”, em Avellaneda, e cantaram durante os “90 minutos” na tentativa de evitar o pior: o desaparecimento.

Em menos de 72 horas após a histórica mobilização, a Câmara de Apelações de La Plata alterou a sentença, e o Racing conseguiu o direito de participar do campeonato nacional. Em 2000, a empresa Blanquiceleste S.A passou a administrar o clube até 2008, quando La Academia superou a falência.

Mesmo em tempos de crise para o país e para a instituição, o técnico Reinaldo “Mostaza” Merlo, ídolo do River Plate, foi contratado em 2001 e travou uma emocionante batalha rodada a rodada contra seu ex-time na disputa pelo título.

Na 16ª rodada, os dois concorrentes empataram em 1 a 1. Então, o time alviceleste manteve cinco pontos de vantagem na liderança. Na rodada seguinte, os “Millonarios” diminuíram a diferença para três pontos, permanecendo assim até o último jogo.

Já na 19ª rodada, o River recebeu o Rosário Central no Estádio Monumental de Núñez, em Buenos Aires, e o goleou por 6 a 1, encerrando sua participação com o melhor ataque (51 gols), a melhor defesa (16 gols) e a artilheiro: Martín Cardetti (17 gols).

Apesar dos números positivos, ainda havia uma pedra no caminho: o Racing. O grupo comandado por Mostaza visitou o Vélez Sarsfield, no Estádio José Amalfitani, e empatou em 1 a 1, garantindo o título por um ponto de diferença.

2014

Em junho de 2014, o técnico Diego Cocca deixou o Defensa y Justicia após ter levado a equipe de Florencio Varela à primeira divisão e assumiu o comando do Racing. Vivendo má fase, o time havia terminado o Torneo Final na antepenúltima colocação e precisava se reestruturar para voltar ao protagonismo nacional.

Coincidentemente (ou não), a Argentina também passava por dificuldades e declarou moratória de quase US$ 100 bilhões em 2001, precisando renegociar a dívida pública com seus credores. Mas parte deles (7,6% do total) não quis receber os valores reestruturados e venderam os títulos para fundos norte-americanos.

Em 2012, o juiz estadunidense Thomas Griesa determinou que o país sul-americano pagasse os fundos “abutres” no valor de US$ 1,33 bilhão. A decisão foi mantida em maio de 2014 pela Suprema Corte dos Estados Unidos, que igualmente impediu a Argentina de honrar as parcelas de dívidas a menos que pagasse os fundos especulativos.

Apesar da resolução, a Argentina depositou a parcela que venceria em junho de 2014 (US$ 832 milhões), destinando US$ 539 milhões ao Bank New York Mellon, que deveria repassar este valor aos credores. Para a presidenta Cristina Kirchner, esta seria uma maneira de não dar calote, mesmo que o dinheiro fosse embargado pela Justiça.

Além de toda a complicação citada, a Argentina enfrentava um período de recessão, o Produto Interno Bruto (PIB) estava em queda e a inflação anual, segundo o Instituto Nacional de Estatística e Censos (INDEC), era de 23,9%, enquanto consultorias particulares a registraram em 40,53%.

No futebol, o Racing acabara de perder Reinaldo Merlo, um dos heróis do título em 2001. Na primeira metade da temporada de 2014, por exemplo, o time chegou a somar 16 pontos em 17 rodadas. O risco de rebaixamento existia. Então, como já explicado, Diego Cocca foi contratado para assumir o comando.

O desafio, brincou o destino, era novamente desbancar o River Plate, atual campeão, líder e favorito ao título. Os passos foram ficando mais firmes até faltarem três rodadas para o término do torneio, quando La Academia recebeu os Millonarios, em Avellaneda, e venceu por 1 a 0, assumindo a ponta da tabela.

O River Plate teve a melhor defesa (13 gols), o melhor ataque (34 gols) e o segundo maior goleador, o colombiano Teófilo Gutiérrez (10 gols). Mas o Racing tinha Gustavo Bou (10 gols) e Diego Milito, único remanescente da conquista no início do século, que voltou ao clube aos 35 anos depois de passar gloriosas temporadas na Internazionale-ITA.

Foi o atacante, inclusive, quem iniciou a jogada que culminou no gol diante do Godoy Cruz, no Cilindro, pela última rodada do campeonato nacional. Fora de casa, o River estava dois pontos atrás na tabela e vencia o Quilmes por 1 a 0. Só que La Academia fechou-se e garantiu o triunfo, encerrando um jejum de 13 anos.

Racing Campeão 2014
Jogadores celebram título nacional conquistado em 2014, que encerrou um jejum de 13 anos (Foto: Divulgação / Racing)

Com o resultado positivo por 1 a 0, a equipe alviceleste, de quebra, superou o eterno rival Independiente em número de títulos nacionais (17 a 16) e assegurou vaga na edição de 2015 da Copa Libertadores, fato que não ocorria desde 2003.

1967

Os dois exemplos acima seriam o bastante para mostrar que os acasos estão aí para explicar o mundo (ou não). Mas, alertado pelo meu colega hermano, vou além. Em parte, para não deixar uma lacuna importante nesta teoria das coincidências. Em outra, para saciar os desejos daqueles que acham que dois casos não são suficientes.

Em junho de 1963, Arturo Illia venceu as eleições presidenciais na Argentina. Durante seu mandato, importantes medidas foram tomadas, como a lei do salário mínimo, promulgação de penalidades à discriminação e violência racial, entre outras. Em junho de 1966, ocorre um golpe de Estado.

Com isso, o General Juan Carlos Onganía assume o poder e dá início ao período da ditadura militar, que não se apresentou em caráter provisório e autodenominou-se como “Revolução Argentina”. No início, houve crescimento econômico, e, claro, repressão a movimentos estudantis e sociais.

Pois bem. Em 1967, o Racing viveu um período glorioso. Embalada com o título nacional da temporada anterior, a equipe comandada pelo técnico Juan José Pizzuti conquista a única Copa Libertadores da história do clube ao derrotar o Nacional, do Uruguai.

No mesmo ano, La Academia derrotou o Celtic-ESC e tornou-se o primeiro clube argentino a ganhar a Copa Intercontinental, feito que o arquirrival Estudiantes, bicampeão continental à época, não alcançou, caindo duas vezes para a Inter de Milão (1964 e 1965).

Enfim, o objetivo do texto não é cravar regras infalíveis em relação às coincidências da vida nem elaborar um discurso contrário à beleza do folclore futebolístico. Meu único intuito é mostrar um caso específico que me foi dito por um colega.

Contudo, algo nesta história é bem certo. No lado vermelho de Avellaneda e em outros incontáveis lugares do país, torcedores juram de pés juntos que crises atormentam a Argentina quando o Racing é campeão.

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Jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero, é apreciador do futebol latino, do teor político-social do esporte bretão e também de seu lado histórico.