Adeus, futebol

Adeus, futebol

Uma melancólica distopia. Será esse o futuro do esporte que tanto gostamos? Conheça a história do garoto colombiano Luisito, em um futuro distante.

COMPARTILHAR

Luisito não dormiu nada naquela noite. Rolou pra cá, rolou pra lá. Vez ou outra abria os olhos. Tudo que enxergava no breu do quarto era a luz fraca do poste, que vencia a fresta na janela e se refletia nas pás do velho e barulhento ventilador, ligado e apontado para a cama.

Sua atenção partia desse ruído ao denso volume sonoro da chuva ácida que castigava a rua há três dias. Culminava na própria voz ecoando dentro da cabeça, que tentava evitar, mas era incapaz de silenciar.

Chamava essa voz insistente, que conhecia bem, de Ansiedad. Ela perguntava a todo momento se já era hora de acordar. Mesmo sabendo que não fazia nem meia hora que Luisito havia deitado.

Ansiedad sabia que o dia seguinte seria importante. Um dia a esquecer a tóxica chuva que golpeava com violência o telhado do prédio, e impedia que qualquer pessoa na cidade saísse de casa pelos próximos cinco dias.

Um dia a esquecer o calor infernal que fazia dentro do quarto, ainda maior que os 43 graus que sua tela indicava apontava fazer na cidade. Motivo pelo qual Luisito sempre deixava uma fresta da janela aberta, mesmo contra a recomendação das autoridades, à espera de uma brisa inexistente.

O que Ansiedad tanto lembrava a Luisito era a grande final da World eLeague, entre Real Madrid, seu time de coração, e Apple Team. Ele havia ganho um ingresso em um sorteio de uma hipermarca de refrescos.

Tratava-se do evento mais esperado do ano. Não se falava de outra coisa na internet. Era o assunto em todos os chats, grupos, portais e redes. Todos ansiosos. Ingressos a mais de 0,0005 cryptocoins – os mais baratos, é claro.

Luisito jamais tinha ido a um estádio. Era de origem humilde. Morava com a mãe em um minúsculo apartamento de um mega prédio popular, que caía aos pedaços. Soledad era confeiteira, o que nos últimos anos havia sido um desafio enorme, por força das diversas restrições sociais.

A chuva ácida impedia Soledad de fazer suas entregas e era um prejuízo gigante no orçamento do mês. Os alimentos em casa já estavam perto do fim. Soledad desde já racionava com Luisito os alimentos que sobravam, e o os dois iam dormir com fome.

Não eram conectados à rede de insumos do centro da cidade, que ligava em túneis os imóveis de quem podia pagar, garantindo o abastecimento em situações como aquela. E também os empregos.

Mas, naquele dia, Luisito não lembrava da fome, do aquecimento, da chuva, da angústia ou de qualquer outra coisa que não fosse a decisão do campeonato.

O menino passou a noite inteira ouvindo mentalmente seu pai contar sobre o futebol de antigamente. Falava sobre a explosão sonora que era ouvir a bola atravessando a linha entre a trave e tocando a rede, não pelo barulho do campo, mas pelo urro coletivo espontâneo que quase rachava a arquibancada.

Neste momento, contava seu pai, era comum abraçar qualquer um que estivesse na frente, tamanha a emoção vivida. Não existia pandemia. Ninguém perguntava sobre política antes do abraço. Ninguém olhava sua raça. Ninguém olhava suas roupas. Nada disso importava durante 90 minutos.

O pai de Luisito também lembrava histórias do avô, que o menino não conheceu. Ele esteve nos dois jogos da final de um torneio chamado Libertadores (parecia muito importante), para ver seu Deportivo Cali buscar o título inédito contra um tal Palmeiras, do Brasil.

Luisito não fazia ideia do que eram esses times, há muito extintos, mas entendia que parecia ser uma façanha incrível.

Naquela época, os confrontos eram de ida e volta. O primeiro jogo aconteceu na Colômbia, e o Deportivo venceu por 1 a 0. O avô, presente, ficou louco de alegria e repleto de esperança.

Existiam torcedores que se organizavam, como fã-clubes, e ele fazia parte de um desses grupos. Escreviam canções, levavam faixas, bandeiras, instrumentos de percussão. Coisas que não eram nem do tempo do pai de Luisito.

O avô partiu para o Brasil junto com eles, em uma viagem de ônibus de mais de 5 dias. Mas o final não feliz. Os verdiblancos perderam nos pênaltis. “Ele chorou nos 5 dias de viagem de volta”, disse o pai. “Mas não se arrependeu um segundo de ter ido”.

Desde a última pandemia de influenza, há cinco anos, o futebol presencial entre humanos havia sido novamente banido por tempo indeterminado, assim como qualquer contato social. O pai de Luisito era uma das milhões de vítimas da doença na Colômbia.

Ao contrário do avô, Luisito sequer sairia de casa naquele dia. Bastava vestir o capacete que ganhou do patrocinador e já estaria na digital Arena Bernabéu.

A imersão virtual prometia simular exatamente a sensação de estar em um estádio. E o menino não sabia o que esperar, já que nunca havia experimentado – a tecnologia era restrita àqueles de maior poder aquisitivo.

De tempos em tempos, as lembranças do pai eram interrompidas por Ansiedad.

Ela não só lhe perguntava a hora. Perguntava também se Agent00 seria escalado titular no lugar de yyyy_D10S, dúvida que permeava a cabeça do técnico madrilenho, que estava dividido entre o talento e a tática. Luisito, claro, queria ver o talento de perto.

Custou, mas o dia nasceu. O sol não. Nem a chuva baixou. Ainda estava escuro. Mas nenhuma condição climática extrema importava a partir dali.

Luisito nem foi atrás de café da manhã, sabia que não teria. E não se importava com a fome.

Conversava ferozmente na tela flutuante com seus colegas sobre o jogo. Eles não o deixavam em paz. Era o único garoto da escola inteira que assistiria imersivamente à decisão.

Virou uma celebridade. Pobre do professor de geografia na chamada de vídeo, que mal sabia que seus alunos pouco queriam saber sobre a eclosão climática ocorrida na década anterior. Havia algo mais importante.

Terminada a aula, o garoto almoçou a pequena arepa recheada com manteiga que a mãe lhe serviu e correu para o quarto, onde ficou o resto do dia atualizando as notícias sobre a final na tela flutuante.

Restando uma hora para o início, precisamente às 15h, o acesso foi liberado. Luisito não perdeu um segundo sequer: vestiu o capacete e deu o comando de voz para iniciar a simulação.

Em questão de segundos, a claridade o cegou. O céu azul anil sem nuvens só era interrompido pelo sol brilhante e escaldante. Ao se acostumar com o brilho, o menino ficou boquiaberto com o que viu à sua frente. A imponente Arena Bernabéu brilhava com LEDs imensos que mostravam os gamers na vida real, se preparando para a decisão.

Luisito nunca viu nada tão grandioso. Antes mesmo da suspensão, o futebol já estava decadente. O eFootball reinava absoluto, e, por isso, os poucos estádios que restavam na Colômbia eram simples e acanhados.

Sem distinguir nada entre virtual e real, milhares de pessoas caminhavam em direção à entrada. Luisito os seguiu, notando que as pessoas estavam no geral sozinhas e em silêncio quase completo, não fosse a música ensurdecedora do estádio.

Ao entrar, um homem de colete laranja berrante indicou onde ele deveria ir. Enfim enxergou o gramado. Era belo e impressionante. Um verde vivo uniforme, recortado por listras mais escuras, sem uma falha sequer.

Sua vontade era de entrar lá. Correr, driblar, chutar, fazer o estádio reagir em uníssono. Sonhava em ser um Pro. Mas o eFootball não permitia. O joystick de imersão virtual era caríssimo. Simulava perfeitamente os movimentos pensados, de acordo com a física.

Luisito sequer tivera oportunidade de jogar, assim como a maioria das crianças de sua escola. Só as mais abastadas podiam. O capacete que ganhou do patrocinador não tinha essa função.

Tudo passou rápido. Luisito estava tão concentrado admirando os detalhes ao redor que até se assustou quando a publicidade no imenso painel flutuante deu lugar a um vídeo anunciando a escalação dos times.

Para sua tristeza, o técnico realmente optou por Agent00. Significava que o time estava preocupado em marcar J4ck_Ripper, craque do time americano e atual melhor gamer do mundo.

Logo as equipes entraram. E então os torcedores começaram a se manifestar. Palmas, assobios, gritos. Nada organizado. Lembrou de seu pai contando sobre os cânticos, mas não ouviu nenhum. Não importava. Luisito entrou na algazarra e começou a fazer barulho também. Pulsava de alegria.

O alarme inicial nos alto-falantes soou pontualmente no horário, e o jogo começou. Os blancos ficaram recuados, como esperado. Eram os azarões. Não disputavam a final há 40 anos. Enquanto o Apple, por outro lado, era o atual tricampeão. E foi para cima.

O goleiro PabloSula1500 brilhou. Fez 5 defesas impossíveis nos 15 minutos iniciais. Luisito se identificava muito com ele. Argentino, era o único sul-americano na decisão. E carregou o Real nas costas durante os playoffs.

Foi quando se deu conta de que havia um certo silêncio na arena. Todos estavam muito quietos, e só reagiam ao que acontecia no campo. O garoto até duvidou das histórias de seu avô.

Pouco depois, o gol adversário finalmente saiu. Uma bomba indefensável até mesmo a PabloSula1500. Acompanhada daquela explosão sonora que o pai contou. Mas que emergiu com um gosto amargo a Luisito. A seu lado esquerdo, um torcedor do Apple pulava de alegria.

Veio o segundo. E o terceiro. E o quarto. Aquele torcedor rival já comemorava timidamente. Terminou o primeiro tempo. Luisito nem conseguia dimensionar a decepção. Lágrimas saltavam de seus olhos no intervalo. Mas nem cogitava ir embora.

Seu humor mudou no segundo tempo. O Real voltou com outra postura. Mais agressivo. Agent000 saiu. Falhou na missão de anular J4ck_Ripper, autor de dois gols. Veio yyyy_D10S, que Luisito tanto admirava. Que no primeiro lance carimbou a trave.

O jogo ficou lá e cá. PabloSula1500 segurava as pontas, e o Real Madrid resistia bravamente pela raça. Até que aconteceu. Escanteio, um cabeceio certeiro e Luisito reagiu com um berro e o salto mais alto que deu na vida – virtualmente, é claro.

Ao se dar conta, estava abraçando o torcedor a seu lado direito, que também era blanco. Virtualmente, mas parecia real. Não interessava o 4 a 1. Houve explosão sonora do mesmo jeito.

Cinco minutos depois, uma explosão ainda mais forte. Yyyy_D10s fez um golaço, na habilidade pura. Um drible de derrubar o cameraman virtual junto com uma cavadinha encobrindo o goleiro. Luisito já chorava de alegria. Tinha esperança.

Por um piscar de olhos, enquanto os times voltavam para o reinício da partida, tudo ficou escuro. O menino estranhou, mesmo com tudo tendo voltado ao normal. Não tinha acontecido falha alguma até então.

A equipe de Madri mal comemorou o gol. Yyyy_D10s pegou a bola virtual de dentro da rede e levou ao centro do gramado correndo. Tinha sangue nos olhos, como o restante do time. O jogo reiniciou com pressão do Real.

Menos de dois minutos depois, o blackout. Desta vez não voltou ao normal.

Luisito gritava, batia no capacete. Passaram-se 5 minutos. Não via mais nada. Chorando, removeu ele da cabeça. Abriu sua tela flutuante e descobriu que não havia mais sinal de internet.

Os apagões de rede eram comuns na região. Nas últimas semanas se intensificaram. Era uma das maiores inquietações de Ansiedad, que maldosamente também lembrara Luisito disso durante toda a noite anterior.

O garoto vestiu novamente o capacete. Passaram-se 5 minutos. 10 minutos. 30 minutos. Duas horas. Ele não perdia a esperança. Assim como não perdia a esperança de que seu Real Madrid havia virado aquele jogo.

Imaginava como Yyyy_D10s teria dado a assistência para o terceiro gol. Como BelgianJoker poderia ter cobrado uma falta com categoria para o quarto. Como a equipe se seguraria durante a prorrogação, mesmo com as estaminas baixas. Como PabloSula1500 pegaria dois pênaltis para entrar para a história.

Lágrimas se acumulavam dentro da escuridão daquele capacete, que nem ao menos tinha uma fresta, como sua janela. Eram tão ácidas como a chuva que não permitiria que os funcionários da companhia de internet saíssem de suas casas para consertar a falha na rede

Luisito ouviu sua mãe batendo na porta, o chamando para jantar. Tirou o objeto, abriu a tela flutuante. Já eram dez da noite. Nenhum sinal.

Estar sem sinal era como não existir naqueles tempos. Junto com a chuva e com as restrições sociais, formava uma espécie de cárcere abandonado. O menino sequer saberia o desfecho do jogo.

Foi até a cozinha e observou uma cadeira vazia de frente para um prato com uma pequena arepa. Sua mãe sentava-se ao lado, sem nenhum prato.

Percebeu que não importava o resultado da decisão. Abraçou Soledad por longos minutos. Deu-lhe um beijo na testa, empurrou-lhe o prato de arepa e disse que não estava com fome.

Luisito voltou para o quarto, apagou a luz e deitou na cama.

Naquela noite, o garoto não demorou a dormir. Sonhou com camisas verdiblancas, cânticos, papéis picados e explosões de alegria.

Mas com desfecho decepcionante, milhas e milhas longe de casa, em um sonho tão imersivo que as lágrimas do pensamento encharcavam o travesseiro.

Não, Ansiedad não precisou dizer qualquer palavra.

Deixe seu comentário!

comentários