Vilão na guerra, herói na bola: A incrível história de Bert Trautmann

Vilão na guerra, herói na bola: A incrível história de Bert Trautmann

Alemão lutou pelo exército nazista e acabou virando herói no Manchester City depois de ser prisioneiro de guerra

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Trautmann superou o passado nazista para virar ídolo no futebol inglês (Foto: Reprodução)
Trautmann superou o passado nazista para virar ídolo no futebol inglês (Foto: Reprodução)

Costuma-se dizer que a história é contada pelos vencedores. No entanto, ninguém consegue passar a vida inteira sem perder algumas batalhas, sejam elas literais ou não. Às vezes, por ideologia ou mero capricho do destino, um indivíduo se encontra do lado errado da questão. Mas a vida pode dar chances disso mudar, e o futebol não fica atrás. Mesmo em casos extremos.

Para exemplificar essa dualidade, é difícil encontrar um personagem mais simbólico que Bernd Trautmann. E a reviravolta na reputação do ex-goleiro, nascido em 1923 na cidade de Bremen, na Alemanha, envolveu as condições mais extremas possíveis, como os horrores da guerra e um sacrifício pela glória.

Mas vamos começar do começo. Assim como muitos alemães que sofreram com a crise econômica na década de 1930, Trautmann sentiu-se seduzido pelo discurso radical de um novo movimento que insurgia no país. Foi assim que, em 1933, inscreveu-se em uma instituição chamada Jungvolk, uma espécie de embrião da Juventude Hitlerista.

Enquanto acompanhava a ascensão do nazismo na Alemanha, Trautmann se dedicava em diversos esportes, algo muito valorizado no idealismo ariano. Quando completou 18 anos, não hesitou ao ser convocado para fazer parte da força aérea alemã na Segunda Guerra Mundial, que havia eclodido dois anos antes.

Ele chegou a ser preso nos primeiros meses de serviço, por conta de uma brincadeira mal sucedida que terminou com um companheiro soldado queimando os braços. Mas foi solto pouco tempo depois, retornou para a guerra e acabaria ganhando medalhas e posições de destaque em seu setor.

Tudo isso começou a mudar em 1944, quando os Aliados já encaminhavam a vitória na Guerra. Trautmann foi capturado por soldados britânicos e levado para um campo de prisioneiros de guerra em Nortwhich.

Obviamente, não havia muitas opções de lazer para os capturados. Uma das poucas eram os jogos de futebol, e foi aí que Trautmann voltou a se destacar, relembrando os anos de atleta juvenil. Atuava como meio-campo, mas após uma lesão foi para o gol e de lá não saiu mais.

Em uma tentativa de reconstruir a própria história, o goleiro recusou a repatriação, decidindo morar na Inglaterra mesmo após o fechamento do campo de prisioneiros. Em 1948, com 25 anos, começou a jogar pelo St. Helens Town, time amador da região de Lancashire.

Suas performances passaram a ganhar destaque e atraíram os olhares do Manchester City, que o contratou em 1949. A princípio, o passado do goleiro como inimigo de guerra foi uma forte barreira para a torcida dos Citizens. Não faltaram protestos em frente à sede do clube e gritos de “Nazista!” que vinham das arquibancadas.

Mas Trautmann superou essa barreira com seu desempenho em campo. E foi graças às defesas salvadoras que ele chegou como titular incontestável no momento que se tornaria chave em sua carreira, na final da Copa da Inglaterra de 1956.

O lendário estádio de Wembley foi o palco da decisão, assistida por aproximadamente 100 mil espectadores. O adversário era o Birmingham, que lutava pelo seu primeiro título. Já o Manchester City que naquela altura já havia sido campeão inglês e conquistado duas copas locais, tentava se livrar do trauma na final do ano anterior, contra o Newcastle.

Com apenas 3 minutos, o City abriu o placar com Hayes. Kinsey empatou aos 15, e a partida foi para o intervalo em igualdade. No segundo tempo, os Citizens conseguiram impor sua superioridade graças a dois gols marcados em cerca de 15 minutos.

Com 3×1 no placar e menos de 30 minutos até o apito final, a equipe de Manchester parecia ter a mão na taça. No entanto, poucos minutos depois, Trautmann levou a pior ao sair para dividir uma bola com o atacante Peter Murphy. Desacordado e com uma fratura no pescoço, parecia o fim da linha para o goleiro.

Logo depois, ele recobrou a consciência e, surpreendentemente, se disse disposto a voltar para a partida, mesmo com a dor agonizante. Trautmann sabia que aquela era a grande chance de se redimir, de alguma forma. E suportou até o final, sem ser vazado.

O Manchester City conquistou a Copa da Inglaterra, e o goleiro que chegou como vilão foi alçado ao status de herói. Os gritos lembrando o nazismo cessaram. Foi assim até sua aposentadoria, em 1964, com um total de 508 jogos disputados com a camisa azul.

Mesmo após pendurar as luvas, Trautmann continuou se esforçando para limpar sua imagem, trabalhando como uma espécie de mediador nas relações entre alemães e ingleses, algo que lhe rendeu uma condecoração da Ordem do Império Britânico.

O ex-goleiro faleceu em 2013, com 89 anos e muita história para contar. Talvez seja leviano dizer que ele realmente se arrependeu de seus atos na guerra. Ou ingenuidade demais pensar que alguém possa se redimir dessa forma. Mas o fato é que, pelo menos para os fãs de futebol, Trautmann é muito mais que um mero soldado do terror.

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