Justiça para os 96

    Justiça para os 96

    Documentário "Hillsborough" (2014) traz a verdade sobre a maior tragédia do futebol inglês, ocorrida há exatos 26 anos.

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    Hoje, 15 de abril de 2015, completam-se 26 anos da morte do futebol inglês. E também de seu renascimento. No longínquo 1989, durante a semifinal da Copa da Inglaterra entre Liverpool e Nottingham Forest, no Hillsborough Stadium, 96 pessoas morreram asfixiadas devido à superlotação de um dos setores do estádio.

    A partir de então, o futebol britânico se reestruturaria completamente, sob as rédeas da competente dama de ferro Margaret Thatcher. Um basta aos antigos estádios em prol das modernas arenas, um basta ao hooliganismo, vilão daquele desastre e de muitos outros. Por quase 23 anos, esta era a narrativa propagada pela imprensa e pelo governo do Reino Unido ao mundo.

    Por sinal, repetida aos montes por programas esportivos brasileiros, para falar sobre a decadência do futebol daqui. Mesmo hoje, três anos após o primeiro-ministro David Cameron pedir desculpas às famílias das vítimas pela forma com a qual o Estado encarou o desastre, alguns cronistas mais antigos – e menos informados – insistem em pedir a “thatcherização” do nosso futebol.

    Homenagem da torcida do Liverpool aos mortos em Sheffield (Foto: Divulgação/Hillsborough Independent Panel)
    Homenagem da torcida do Liverpool aos mortos em Sheffield (Foto: Divulgação/Hillsborough Independent Panel)

    Não, os hooligans não foram responsáveis por aquele desastre. Não eram santos – protagonizaram a Tragédia de Heysel, quatro anos antes, dentre muitas outras. A culpa de Hillsborough era das autoridades britânicas, lideradas pela incompetente dama de ferro Margaret Thatcher, e, porque não, da sensacionalista imprensa inglesa, que jamais questionou a versão oficial da polícia – pelo contrário, espalhou mentiras sobre o episódio e tratou de condenar injustamente a torcida do Liverpool.

    Tudo isso está retratado com perfeição no documentário “Hillsborough” (2014), da série ESPN 30 for 30. Lançado no aniversário de 25 anos da tragédia, é certamente o filme definitivo sobre o caso. Dirigida por Daniel Gordon, a emocionante obra aborda, ao longo de duas horas, todas as facetas do desastre: os precedentes, a tragédia em si, as versões, as investigações e a demorada retratação.

    Depois de assistir a obra, analisando 26 anos depois, sob o olhar estrangeiro, é surreal pensar que a primeira coisa que os legistas fizeram após o desastre tenha sido testar o nível alcóolico no sangue das vítimas. E que elas acabaram culpadas de sua própria morte. E que o The Sun, tabloide mais odiado em Liverpool, publicou diversos artigos nos dias seguintes à tragédia afirmando com todas as letras que hooligans bêbados dos Reds não só provocaram o tumulto, como também urinavam nos policiais que tentavam salvar as pessoas prensadas na grade.

    23 anos depois, Jornal The Sun pediu desculpas por responsabilizar a torcida pelo Desastre de Hillsborough (Foto: Reprodução)
    23 anos depois, tablóide The Sun pediu desculpas por responsabilizar a torcida pelo Desastre de Hillsborough (Foto: Reprodução)

    “Hillsborough” traz relatos de familiares, de policiais que estavam na tragédia e de sobreviventes. Além da participação mais que especial de Phil Scaton, um dos heróis na incessante busca pela verdade, autor do livro “Hillsborough – The Truth” (1999), a primeira obra a contestar a versão oficial sobre o ocorrido.

    Tudo aconteceu devido a uma sequência de erros de planejamento e de comando. Nenhum portão foi arrombado e os torcedores não estavam sem ingresso. Os chefes de polícia, despreparados, é que ordenaram a abertura do setor Standing (equivalente ao Geral, no Brasil, onde as pessoas ficam em pé), ao se depararem com uma multidão na frente do estádio minutos antes do início do jogo.

    Foram os mesmos chefes de polícia que, observando as pessoas serem esmagadas na grade, esperaram o árbitro paralisar a partida após 15 minutos e ainda mandaram os oficiais formarem um cordão de isolamento no meio de campo para evitar que os “invasores” do Liverpool entrassem em contato com os torcedores do Forest, ao invés de ajudarem a evacuar o setor superlotado.

    O mais grave da história, contudo, é que o depoimento de quase todos os policiais após o desastre foi adulterado sem consentimento e sem conhecimento dos mesmos. Tudo veio à tona no relatório do Painel Independente de Hillsborough, divulgado em 2012, 23 anos depois. Sem a interferência do governo. E, enfim, o veredito das vítimas mudou de “culpado”, para “inocente”, não apenas no tribunal, mas também perante a opinião pública.

    Até mesmo o The Sun publicou uma retratação e pediu desculpas à torcida, aos mortos e aos familiares. Mas, como o documentário enaltece, a luta não acabou. O painel independente atualmente trava uma batalha ainda mais difícil – a busca pelos verdadeiros responsáveis e seu consequente indiciamento. Quem ordenou a abertura dos portões? Quem adulterou os depoimentos dos policiais? “Justiça para os 96, já!”, clama a torcida do Liverpool:

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