Devaneios infantis de Libertadores

Devaneios infantis de Libertadores

As (descartadas) mudanças na Libertadores por um fictício garoto boliviano.

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Tão distante quanto o findar do sol por trás da montanha, o pequeno Victor Augustín está feliz. Não por ter conseguido vender o jorongo de lã de alpaca – que sua mãe fez – a aquele turista equatoriano perdido no centro de Oruro, mas porque isso representava ter dinheiro para ir ao jogo da Taça Libertadores naquela noite com seu avô.

E que jogo. O modesto Club Deportivo San José receberia o El Nacional, do Equador, no estádio Jesús Bermúdez. Uma semifinal de Libertadores! No primeiro jogo, em Quito, vitória por 1 a 0 dos anfitriões. Mas isso não abalou Victor.

O San José já havia contrariado todos os prognósticos para chegar até ali. Conseguiu passar raspando pela fase de grupos, com uma das piores campanhas – superior apenas à do El Nacional. Despachou o poderoso Grêmio nas oitavas. Calou o Campeón del Siglo ao segurar um aguerrido empate contra o Peñarol que acabou por eliminar os uruguaios nas quartas.

Victor esteve em todos os jogos em casa. Era como um ritual. Acordava muito cedo, pegava as roupas que sua mãe produzia e levava para uma pequena barraca que cuidava com seu irmão. Nesses dias, produzia mais. Parava as pessoas nas ruas, gritava, chamava a atenção. Se conseguisse um pouco mais que o normal, podia ficar com o dinheiro. Esse era o acordo.

“Eles não terão a menor chance”, disse seu avô enquanto caminhavam para o estádio, a despeito da vantagem no jogo de ida. Confiava na pressão da torcida e do caldeirão formado no Jesús Bermúdez.

Estádio Jesús Bermúdez (Foto: Reprodução)
Estádio Jesús Bermúdez (Foto: Reprodução)

O primeiro tempo foi burocrático. Jogo truncado, as duas equipes se estudando. Quase nenhum lance de perigo. Nem isso afastava o otimismo de Victor e de seu avô. “Eles são fracos. Se pressionar um pouco mais, entregam”, garantiu o ancião.

O garoto só começou a ficar realmente nervoso lá pelos 20 minutos do segundo tempo. Os equatorianos já estavam cansados, talvez pelo ar rarefeito, mas o San José não conseguia tirar proveito disso. Muitas bolas alçadas na área, aproveitamento perto de zero.

Pela primeira vez naquela Libertadores, Victor perdia a confiança. Cruel, quando sua inocência típica da infância o fez ser o único em toda a Bolívia a acreditar desde o princípio que seriam campeões do maior torneio da América do Sul.

“Não, Cainzo. Não!” lamentou em voz alta quando o lateral escorregou ridiculamente ao tentar cruzar, dando início a um contragolpe perigoso. “Vai perder”, antecipou o avô, enquanto o adversário perdia o fôlego. Arriscou de longe, e o goleiro agarrou.

Na reposição de bola, inesperadamente rápida, as coisas se inverteram. Faltou fôlego ao zagueiro para acompanhar Castillo. O veloz ponta invadiu a área e tocou para Ramírez, livre, empurrar para o gol.

O estádio veio a baixo. Victor foi abraçado com força por seu avô, que gritou em seu ouvido. “Eu disse! Eu disse!”. O menino voltou a acreditar. Pulava nas arquibancadas, cantava junto com a multidão. Foram dez minutos sem pausa, em que o time parecia pulsar em campo como os torcedores.

Não demorou a Cainzo acertar o cruzamento desta vez, e coube a Quinteros subir entre a abalada defesa do El Nacional para cabecear e marcar o segundo. “Estamos na final! Estamos na final!” berrava Victor. Seu avô tentava esconder as lágrimas.

Terminado o jogo, o garotou perguntou, empolgado: “O primeiro jogo vai ser aqui, né? Nós vamos, né vô?”. Para sua surpresa, seu vô respondeu que não. Que seria apenas um jogo, no estádio Centenario, em Montevidéu.

Surpreso, o menino se indignou. Perguntava o por quê, e seu avô não sabia responder. “Como vamos ganhar? Eles precisam de nós!”, argumentava. Chegou a falar em juntar todo o dinheiro que conseguisse com as costuras de sua mãe. Seu avô apenas balançou a cabeça.

Até que Victor acordou de forma brusca em seu quarto. Não sabia se esse devaneio todo tinha sido um sonho feliz ou um pesadelo. E lembrou que o San José, mesmo vice-campeão no último Apertura, sequer havia se classificado para a Libertadores.

O garoto ficou em dúvida se a final realmente era em um ou dois jogos, mas teve pouco tempo para refletir. Logo seu irmão veio lhe chamar para levantar e ajudar a separar os jorongos para levar à barraca. Espreguiçou-se e obedeceu.

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Antidistópico depurador da realidade subjetiva futebolística.