Anos 70. Nos gramados alemães, os jogadores de defesa compartilham de um mesmo medo. Se houver um bate-rebate dentro da área, a possibilidade de aparecer um pé matador para mandar a bola para as redes é enorme. Pé pertencente a um goleador não muito alto, até baixinho para o padrão dos grandes atacantes. A marca de um artilheiro germânico histórico, que marcou época com números impressionantes.
Se você pensou em Gerd Muller, não se preocupe. O lendário camisa 13 da seleção alemã, apelidado como “Der Bomber” (O Bombardeiro), é de fato um dos maiores fazedores de gol da história e se encaixa em todos os quesitos listados acima. Mas ele não era o único. Enquanto na porção ocidental Muller empilhava tentos e troféus, do outro lado do Muro de Berlim um outro artilheiro servia como uma espécie de espelho e escrevia seu nome na história da Alemanha Oriental.
Esse é Joachim Streich. Se você nunca ouviu ou leu esse nome, também não há motivos para preocupação. Existe uma explicação bem óbvia. A Guerra Fria e a polarização do mundo por décadas fizeram com que o acesso à informação ao lado leste da Alemanha fosse bastante dificultado naquela época, o que consequentemente diminuiria o alcance dos feitos do craque, nascido em 1951 na pequena cidade de Wismar, no norte do país.
Desde muito jovem, quando ainda dava seus primeiros passos no mundo da bola nas categorias de base do TSG Wismar, Streich já mostrava um talento acima da média e características que permaneceriam até o fim de sua carreira. A inteligência para se posicionar, a economia nas corridas e a capacidade de resolver um lance com apenas um toque já se mostravam presentes. Assim como uma certa dose de sorte, que nunca fez mal a nenhum goleador.
Foram esses atributos que despertaram o interesse do Hansa Rostock, renomado time da região que em 1967 contratou Streich, a princípio para atuar entre os juvenis. Mas o jovem desenvolvia rapidamente seu futebol, e com apenas 18 anos já fazia apresentações regulares com o time principal do Hansa, que brigava pelos postos mais altos da Oberliga, o principal campeonato da Alemanha Oriental.
A pouca idade não impediu o atleta de chamar atenção. Com personalidade, Streich logo tornou-se um dos ídolos da torcida, iniciando assim as comparações com Gerd Muller, que, com seis anos a mais, já era um dos maiores nomes do futebol alemão na época. Apaixonados por esporte e cientes do poder que o futebol tem para carregar massas, os alemães orientais já enxergavam em Streich uma arma para derrubar dentro de campo seus vizinhos ocidentais, mais ricos e prolíficos.
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Foi assim que o atacante chegou à seleção, ainda no ano de 1969, iniciando uma trajetória que se tornaria histórica no esporte local. Se no Hansa Streich mostrava um quê de jovem atrevido, na seleção ficou mais maduro e desenvolveu ainda mais suas habilidades, assim como sua personalidade.
Atletas da Alemanha Oriental tinham uma vantagem considerável sobre o restante da população do país: tinham condições de viajar e conhecer outros territórios, cuja realidade era bastante distinta do padrão das nações da Cortina de Ferro. Em uma excursão à Grécia com o Hansa Rostock, em 1970, Streich e alguns colegas chegaram a cogitar uma deserção, pedindo asilo no país.
Para a sorte dos orientais, a ideia não seguiu em frente. Com isso, a seleção nacional poderia contar com o centroavante nos Jogos Olímpicos de 1972, em Munique. Marcando seis gols em quatro partidas, Streich foi um dos destaques na campanha que levou a medalha de bronze nos jogos, juntamente com o atacante Sparwasser e o meia Kreische.
A medalha foi uma cereja no bolo, já que o prato principal havia sido servido ainda na primeira fase da competição. Em um jogo de vida ou morte, a Alemanha Oriental encarou sua vizinha e anfitriã do torneio na última rodada. Mesmo precisando apenas de um empate para eliminar os rivais, o time de Streich venceu a partida por 3×2, com direito a um gol do centroavante.
Dois anos depois, a revanche. O sorteio da Copa do Mundo de 1974 colocou os lados ocidetal e oriental da Alemanha para duelar mais uma vez. E de novo os orientais sairiam com a vitória, dessa vez por 1×0, com gol de Sparwasser. O triunfo foi o grande momento da campanha do país no torneio, que foi encerrada na segunda fase. Streich encerrou sua participação com dois gols marcados, nos jogos contra Austrália e Argentina.
Pouco depois do Mundial, o artilheiro resolveu mudar de ares. Após várias temporadas tentando um título que não chegaria ao Hansa Rostock, Streich transferiu-se para o Magdeburg, maior potência do país na época e campeão da temporada 1974-75. Com o maior craque local, o time tinha tudo para se tornar ainda mais dominante.
Estranhamente, não foi isso o que ocorreu. Streich continuou com uma média de gols impressionante, conquistando a artilharia da Oberliga em três oportunidades pelo Magdeburg. Mas o restante da equipe não acompanhou o ritmo, definindo uma sina. O jogador mais renomado do país acabaria a carreira em 1985 sem jamais ter conquistado uma liga local.
No entanto, foram três títulos da FDGB-Pokal, a Copa da Alemanha Oriental, segundo título em importância na época, além de dois prêmios de melhor jogador do país. A galeria de troféus pode ser modesta, mas os números não mentem. Foram 229 gols em 378 partidas oficiais pelos clubes. Na seleção, Streich detém tanto o recorde de jogos disputados (102) como o de gols marcados (58). Um talento que a tensão política daquele tempo tentou esconder, mas que o futebol tenta mostrar.