A partida havia acabado de começar. Os torcedores da seleção dona da casa ainda se acomodavam nas cadeiras do Olympiastadion, em Munique. A poderosa seleção alemã sequer havia tocado na bola quando esta procurou quem gostava de tratá-la tão bem. Um homem esguio, cabeludo, que a dominou no círculo central já levantando a cabeça para ver o que só gente como ele conseguia.
Três, quatro, cinco passos andando com a fiel companheira até a chegada do marcador. Um muro começava a se levantar em sua frente. O que fazer? Um drible curto e, como se tivesse ganho forças diretamente dos deuses da bola, uma súbita mudança de ritmo. A arrancada só foi parar dentro da área. Pênalti. A Holanda saía na frente na final da Copa do Mundo de 1974. E não poderia ser de outra forma além da genialidade de Johan Cruyff.
Fanáticos por futebol já sabem que os holandeses não resistiram à aplicação alemã naquela decisão. Por que, então, escolher um lance de uma derrota para homenagear um gigante como Cruyff? Talvez existissem formas melhores de lembrar de um multicampeão no Ajax, inventor do badalado sistema de jogo barcelonista, sem dúvidas um dos maiores nomes da história desse esporte.
Mas esse lance na final de 1974 explica bem o fenômeno que foi o holandês. A forma como ele sempre parecia ter o pensamento à frente de todos os outros, a maneira que ditava o ritmo, o jeito de fazer lances geniais parecerem tão simples. A arrancada contra a Alemanha mostrou não só um artista no auge de sua forma, mas também a confiança de um homem que nunca teve medo de fazer o que acreditava ser certo.
Cruyff levou para os gramados a rebeldia e transgressão que marcou a década de 1970. Em uma época em que todos os jogadores titulares costumavam atuar com numeração de 1 a 11, escolheu a 14, que virou sua marca. Não tinha pudor para brigar com seus colegas dentro de campo depois que erravam. Batia de frente com técnicos, cartolas, empresários e qualquer outro que ousasse desafiar suas ideias.
Essa é uma característica comum de pessoas que comandam revoluções. E o que Cruyff fez para o futebol não pode ser considerado nada menos que isso. Ele conseguiu a proeza de aprimorar um esporte que na década de 1970 já era uma paixão consolidada para milhões de pessoas. No que está bom não se mexe? Não para Cruyff. O Brasil então atual campeão mundial, sentiu isso da forma mais dolorosa no Mundial da Alemanha.
Os frutos do legado de Cruyff vão além de suas arrancadas, seus passes precisos, sua elegância em campo e seus dribles desconcertantes, como o famoso “Cruyff turn” que virou coqueluche logo após a Copa de 1974.
A obra do mestre já estaria muito bem servida se fosse composta apenas por lances de extrema plasticidade como esse. Mas felizmente, para nós, não é. A trajetória de Cruyff é a prova da vitória de um conceito, que vai além do próprio esporte para servir como uma espécie de filosofia.
O célebre camisa 14 costumava dizer que em toda desvantagem havia uma vantagem. Algo confirmado na decisão de 1974, citada no início. Nas contas frias das enciclopédias, a Holanda ficou sem o título. Mas na memória futebolística, o que ficou marcado daquela Copa foi justamente o Carrossel liderado por Cruyff.
“É melhor perder com seus próprios conceitos do que com os de outra pessoa”. Esse era outro lema de Cruyff, algo que ele parece ter levado à risca até os últimos momentos da vida. De certa forma, até mesmo a doença no pulmão que provocou sua morte, muito influenciada pelos anos de fumante inveterado, soa como algo digno de alguém que queria viver do seu jeito, e que até num momento assim parecia ter tudo sob controle. Do mesmo jeito que controlava a bola, seus colegas, comandados e seguidores.
Ao longo do dia, deve-se ouvir várias vezes que “o mundo do futebol agora está mais triste”. E é óbvio que corações se apertam quando um grande ídolo parte. Mas a alegria proporcionada por Johann Cruyff não se apaga agora, com sua morte. Se eterniza. Porque uma vida apenas não basta para definir um legado. O homem que tanto agradou os deuses da bola agora se junta definitivamente a eles.