Zâmbia e o sonho mundialista que virou pesadelo

Zâmbia e o sonho mundialista que virou pesadelo

Saiba mais sobre o desastre aéreo que matou 18 jogadores da Zâmbia em abril de 1993

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Há tragédias que marcam para sempre o futebol, como as que acometeram o Torino e o Manchester United, dois exemplos de equipes que sofreram com desastres aéreos. No dia 4 de maio de 1949, 18 jogadores do time italiano faleceram após o avião em que estavam ter colidido com a fachada da Basílica de Superga, em Turim.

Quase nove anos mais tarde, em 6 de fevereiro de 1958, uma falha na decolagem da aeronave que saía de Munique com destino à Inglaterra resultou na morte de 23 pessoas, incluindo oito atletas dos Diabos Vermelhos. Ambos os clubes, entretanto, não foram os únicos que passaram por essa lastimável experiência.

No fim da noite de 27 de abril de 1993, 18 jogadores da seleção da Zâmbia perderam a vida após um acidente aéreo no Oceano Atlântico, a cerca de 500 metros do litoral de Libreville, capital do Gabão. Outros sete passageiros e mais cinco tripulantes também morreram na ocasião. Não houve sobreviventes.

O Alambrado relembra alguns pontos importantes de um dos episódios mais tristes da história do futebol africano. Confira:

Contexto

A Zâmbia possuía uma talentosa geração que atraiu holofotes durante os Jogos Olímpicos da Coreia do Sul, realizados em 1988. O país havia conquistado uma das três vagas destinadas à Confederação Africana de Futebol (CAF), ao lado de Tunísia e Nigéria.

Na fase de grupos, a seleção comandada pelo técnico zambiano Samuel Ndhlovu teria de enfrentar Iraque, Itália e Guatemala, respectivamente, em busca da classificação para as quartas de final. E os resultados da primeira rodada não foram nada animadores.

Favoritos, os italianos golearam os guatemaltecos na estreia por 5 a 2, enquanto os africanos até conseguiram a virada diante dos iraquianos, mas sofreram o gol de empate e ficaram no 2 a 2. Por isso, um resultado negativo contra a Azzurra seria preocupante.

O que poucos poderiam imaginar, na verdade, era um passeio dos “Chipolopolo” para cima dos europeus. E foi exatamente o que aconteceu. Com um hat-trick do atacante Kalusha Bwalya, a Zâmbia aplicou 4 a 0 na equipe que tinha no elenco Stefano Tacconi, grande goleiro da Juventus, e Andrea Carnevale, futuro companheiro de Maradona no Napoli.

Embalada, a equipe de Ndhlovu repetiu o placar para cima da Guatemala com outros dois gols de Bwalya, então jogador do Cercle Brugge, da Bélgica, e mais dois tentos do meio-campista Derby Makinkam, que defendia o Profound Warriors, de seu país natal.

Os placares elásticos garantiram ao time da Zâmbia o melhor ataque da primeira fase (10), à frente de Brasil (9), futuro vice-campeão, e Alemanha Ocidental (8), além da segunda melhor defesa (2 gols sofridos), atrás apenas dos brasileiros (1 gol sofrido).

Nas quartas de final, porém, o sonho africano naquela edição olímpica chegaria ao fim. A Alemanha, que viria a conquistar o bronze ao bater a Itália por 3 a 0, não deu espaço para nova zebra e eliminou a Zâmbia por 4 a 0, avançando para medir forças com o Brasil.

Apesar da dura derrota, os zambianos ficaram com um honroso quinto lugar, atrás respectivamente da União Soviética, do Brasil, da Alemanha e da Azzurra. E Bwalya foi o vice-artilheiro ao lado do soviético Dobrovolski (6), superados apenas por Romário (7).

Em 1991, enfim, um título para os “Chipolopolo” após sete anos de hiato. O bicampeonato da Copa CECAFA, torneio de nações mais antigo da África, em Uganda, foi obtido de forma invicta, com os seguintes resultados: 1 a 0 sobre o Quênia, 3 a 2 diante de Zanzibar, 0 a 0 com Malawi, 3 a 2 contra Sudão e 2 a 0 novamente sobre o Quênia, na final.

Em outubro do ano posterior, ocorreu a primeira fase das Eliminatórias para a Copa do Mundo de 1994, que seria realizada nos Estados Unidos. A Zâmbia acumulou seis pontos assim como Madagascar, mas levou vantagem no saldo de gols (8 a 4) e avançou para a etapa seguinte, tendo como próximos adversários Marrocos e Senegal.

Acidente

Dos 20 jogadores que haviam sido convocados para disputar os Jogos Olímpicos de 1988, seis estavam viajando com a delegação zambiana naquele fatídico 27 de abril de 1993. Eram eles os goleiros David Chabala e Richard Mwanza, os zagueiros Samuel Chomba e Eston Mulenga, e os meio-campistas Derby Makinka e Wisdom Mumba Chansa.

O voo organizado pela Força Aérea da Zâmbia levava os Chipolopolo de Lusaka, capital de seu país, para Dakar, onde a equipe enfrentaria Senegal pelas Eliminatórias da Copa. O trajeto incluía três paradas de reabastecimento nas cidades de Brazzaville, no Congo, Libreville, no Gabão, e Abidjan, na Costa do Marfim.

Na primeira parada, houve registros de problemas no motor do De Havilland Canada DHC-5D Buffalo. Mesmo assim, a viagem prosseguiu. No entanto, poucos minutos depois da decolagem em Libreville, o motor esquerdo pegou fogo e falhou. O piloto, então, desligou o motor direito, o que fez com que a aeronave caísse no mar.

Segundo os resultados da investigação feita pelo Gabão em novembro de 2003, o piloto havia desligado o motor errado depois do incêndio. O acidente resultou em 30 mortes, incluindo a de 18 jogadores, quatro integrantes da comissão técnica, cinco membros da tripulação, um dirigente, um funcionário público e um jornalista.

A aeronave, que havia entrado em serviço em 1975, não fora utilizada entre o final de 1992 e abril de 1993, mês em que realizou dois voos de testes antes de partir rumo a Senegal. Apesar de ter sido identificada uma série de defeitos no motor, como cabos desconectados e traços de aquecimento, o avião seguiu sua rota.

Na época, o capitão do selecionado, Kalusha Bwalya, que estava na Holanda para defender o PSV, havia combinado que faria seu próprio deslocamento até Senegal. Já Charles Musonda, então jogador do belga Anderlecht, estava lesionado e não viajou. Além deles, Bennett Mulwanda Simfukwe foi retirado de última hora da lista de passageiros.

Kalusha Bwalya visita colegas
O talentoso Kalusha Bwalya, que viria a presidir o futebol de seu país, visita os companheiros mortos (Foto: Reprodução)

Embora haja um relatório oficial do governo gabonês, os parentes das vítimas ainda cobram do governo da Zâmbia um documento para explicar como a aeronave foi autorizada a deixar o país. Mais tarde, como forma de homenagem, os membros da equipe nacional mortos na tragédia foram enterrados em um monumento erguido ao norte do Estádio Independência, em Lusaka.

Futuro

Devido ao acidente, a reformulada Zâmbia só entrou em campo em 4 de julho de 1993, quando venceu o Marrocos por 2 a 1, em casa, pelas Eliminatórias do Mundial. Depois, jogou duas vezes contra Senegal, com um empate sem gols em Dakar e uma goleada por 4 a 0, em casa. Por fim, perdeu em Marrocos por 1 a 0 e viu o algoz ir para a Copa.

Em 1994, comandados pelo técnico escocês Ian Porterfield, substituto de Godfrey Chitalu, até hoje o maior artilheiro da seleção zambiana com 76 gols, os “Chipolopolo” chegaram invictos à final da Copa Africana de Nações, tendo enfrentado Serra Leoa (0 a 0), Costa do Marfim (1 a 0), ambas na primeira fase, Senegal (1 a 0) e Mali (4 a 0), no mata-mata.

Já a Nigéria, por sua vez, havia passado por Gabão (4 a 0), Egito (0 a 0), Zaire (2 a 0) e Costa do Marfim (2 a 2) em seu caminho até a decisão continental, contando com um inspirado Rashidi Yekini, goleador do torneio com cinco gols, e outros atletas de grande qualidade, como Jay-Jay Okocha, Sunday Oliseh, Victor Ikpeba e Daniel Amokachi.

Na disputa pelo título, os zambianos saíram na frente logo no início do confronto, com Elijah Litana. Mas Emmanuel Amuneke brilhou e virou o placar com dois tentos, dando o bicampeonato para os nigerianos. Depois dessa partida, a Zâmbia só voltaria a disputar uma final da Copa Africana em 2012. E no Gabão, por capricho do destino.

Zâmbia ganhou da Costa do Marfim
Zâmbia foi campeã inédita da Copa Africana no mesmo país em que seleção sofreu acidente (Foto: Reprodução)

Na verdade, a equipe comandada pelo técnico francês Herve Renard atuou em Bata, na Guiné Equatorial, até a semifinal, e só uma eventual classificação lhe daria o direito de viajar para Libreville. A trajetória na fase de grupos começou diante de Senegal (2 a 1), passou pela Líbia (2 a 2), e terminou contra a própria Guiné (2 a 1).

Nas quartas de final, vitória tranquila por 3 a 0 sobre o Sudão. O próximo desafio seria contra Gana, que havia feito uma ótima campanha no Mundial de 2010 e era favorita, apesar do sufoco para eliminar a Tunísia na prorrogação. A semifinal foi bastante parelha, e Emmanuel Mayuka decidiu o jogo a poucos minutos do fim.

Em 12 de fevereiro, a Zâmbia entrava em campo para encarar a forte Costa do Marfim e prestar uma homenagem digna a seus mortos. Assim como na fase anterior, a final bem foi acirrada, com direito a Drogba errando um pênalti. Na prorrogação, a igualdade sem gols persistiu, o que forçou uma agônica e emocionante disputa de pênaltis.

O placar já estava 7 a 7 quando o zagueiro Stoppila Sunzu se encaminhou para a marca da cal, olhou para o goleiro Boubacar Barry e colocou as mãos na cintura. Depois, correu em direção à bola e a chutou com o pé direito, perto do meio do gol, meio desajeitado, desequilibrando-se e quase caindo após a pelota balançar a rede.

O Estádio d’Angondjé presenciava uma reconexão com a história que fora interrompida por uma tragédia. Kalusha Bwalya, aquele talentoso jogador de outrora, tornou-se presidente da Associação de Futebol da Zâmbia e não mediu esforços para colocar seu país outra vez sob os holofotes, tendo inclusive treinado a seleção antes de virar dirigente.

Esforços admiráveis para tentar alcançar o sonho mundialista que nunca se tornou realidade. Pelo menos por enquanto. É óbvio que uma eventual vaga na Copa não faria com que uma geração substituísse a outra, mas seria uma ótima maneira de honrar a memória daqueles que perderam a vida tentando cumprir essa missão.

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