A noite em que os franceses do Metz calaram o Camp Nou

A noite em que os franceses do Metz calaram o Camp Nou

Em uma virada improvável, Metz roubou a vaga do Barcelona na Recopa Europeia de 1984

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Metz superou diversos obstáculos para superar o Barcelona em 1984 (Foto: Reprodução)
Metz superou diversos obstáculos para superar o Barcelona em 1984 (Foto: Reprodução)

Entre as diversas características que tornam o futebol um esporte tão apaixonante, duas podem ser destacadas. Uma delas é a capacidade de gerar surpresas, zebras inimagináveis que passeiam pelos gramados e deixam torcedores boquiabertos. A outra é a possibilidade de acontecerem grandes viradas, recuperações aparentemente impossíveis de times já dados como derrotados e que triunfam quando tudo apontava contra.

Imagine então o efeito provocado por uma junção entre esses dois fatores. Uma vitória improvável de um nanico sobre um gigante, buscando a classificação que nem o mais fiel fanático esperava, na casa do rival, e revertendo uma considerável desvantagem. São tantos ingredientes que chega a parecer forçação de barra, um fruto de delírio futebolístico. Mas foi exatamente o que aconteceu na Recopa Europeia de 1984, entre o badalado Barcelona e o modesto Metz.

A competição, considerada na época como a segunda em importância na Europa (atrás da Copa dos Campeões e à frente da Copa da UEFA), reunia os vencedores das copas domésticas do continente. O Metz, que havia conquistado na temporada anterior o primeiro título de sua história na decisão da Copa da França contra o Monaco, era claramente o azarão no confronto contra o Barça treinado pelo inglês Terry Venables.

O time catalão contava com o alemão Bernd Schuster como referência técnica. Meio-campista habilidoso e versátil, era o responsável por criar oportunidades para a dupla de ataque, formada por Archibald e Carrasco. Já os franceses tinham um time jovem, que ganhava suas partidas na base da valentia e do oportunismo do atacante sérvio Zvonko Kurbos, que ganhou o apelido de “Tony” pelos torcedores.

Difícil pensar o que seria melhor no sorteio para uma equipe tão inexperiente no cenário europeu. Pegar um adversário fraco e aumentar as chances de passar de fase ou dar de cara com um gigante e ter uma história melhor para contar? A decisão pode variar, mas o fato é que logo na primeira rodada as bolinhas colocaram as duas equipes frente a frente.

A esperança do Metz era construir um bom resultado em casa, no jogo de ida, para ir ao Camp Nou com alguma chance de conquistar a classificação improvável. Mas os 22 mil torcedores que compareceram para apoiar o time francês no estádio Saint-Symphorien acabariam indo embora desolados.

Com uma apresentação segura, o Barcelona praticamente fulminou os donos da casa. Os visitantes abriram o placar com um gol contra do zagueiro Sonor, logo aos 12 minutos. Aos 44, O matador Kurbos empatou e deu um pingo de confiança à equipe, que veio para o segundo tempo pensando em ir com tudo ao ataque.

Mas as esperanças acabariam cedo. Aos dois minutos, Schuster colocou o Barça à frente mais uma vez. Aos oito, Calderé aumentou o placar, e pouco depois o atacante Carrasco fez o quarto. Tudo parecia perdido para os donos da casa. Nem mesmo o gol de pênalti de Rohr, no final do jogo, serviu para convencer os torcedores que a remontada seria possível.

Mas um fator faria a diferença: O orgulho. E o dos atletas do Metz estava ferido. Primeiro por conta de uma provocação de Schuster, que supostamente teria agradecido ao goleiro Ettore pelas suas falhas durante o jogo, dizendo que iria presenteá-lo com um presunto. Depois, com o atacante Archibald chamando os franceses de “palhaços” por conta das faltas cometidas na partida. O presidente do Barça entrou na onda, dizendo que convidaria os jogadores do Metz para assistirem a fase seguinte nos camarotes do Camp Nou.

A brincadeira parecia fazer sentido. Nenhum time francês havia derrotado o Barcelona na Catalunha até ali. O que esperar então de um time pequeno, como o Metz, que além de tudo precisaria de uma vitória por três gols? Tantas humilhações vindas do lado barcelonista nada mais eram do que uma contação de vantagem do lado vencedor. Era o que parecia.

Sem acreditar em seus conterrâneos, as TVs da França nem mesmo enviaram equipes de transmissão à Espanha para o jogo de volta. E a torcida blaugrana também considerou o jogo como uma mera formalidade, com apenas 24 mil ingressos vendidos entre os 100 mil colocados à disposição.

O jogo começou mais ou menos como se esperava, com o Barcelona controlando as ações e dando trabalho ao goleiro Ettore. Aos 33 minutos, Carrasco abriu o placar para o time da casa, praticamente selando a vaga.

A partida entrou em um modo “piloto automático”. O Barça tocava a bola, enquanto o Metz tentava acompanhar o ritmo e não passar vexame. Só que aos 38 minutos, em um daqueles caprichos dos deuses do futebol, a situação começou a mudar. Kurbos avançou pela direita e bateu firme para superar o goleiro Amador. Era o gol de empate.

Tudo bem, era apenas um gol. Mas o Barcelona vacilou pouco depois da saída de bola, dando chance para um contra-ataque fulminante. Bernad acionou Kurbos mais uma vez, e o atacante cruzou a bola para a área. José Sanchez, o capitão blaugrana, tentou afastar e acabou jogando contra as próprias redes. O Metz virava a partida, para incredulidade geral dos presentes.

Na condição de franco-atirador, o Metz se lançou para o ataque na segunda etapa, abrindo brechas em sua defesa. O goleiro Ettore, se redimindo do jogo de ida, fez defesas importantes para impedir o gol de empate. E aos 11 minutos, mais um passo dado rumo à história. Kurbos, sempre ele, tocou na saída de Amador e ampliou para 3×1. Faltava só mais um degrau.

O que se viu dali em diante foi um drama digno de Hollywood. O Barcelona parecia ao mesmo tempo acuado e pressionado a atacar para dar uma satisfação à sua torcida. O Metz não se contentava com a “quase-glória” e ia com tudo para cima. Depois de uma sequência de chances perdidas pelos dois lados, veio a pá de cal.

Kurbos, o heroi do Metz (Foto: Reprodução)
Kurbos, o heroi do Metz (Foto: Reprodução)

O senegalês Bocandé avançou pela esquerda e tentou o cruzamento. A bola rebateu na defesa, e acabou sobrando para ele mais uma vez. Só que agora, o passe foi certeiro, logo nos pés do iluminado Kurbos. Próximo da pequena área, ele dominou com calma e encheu o pé para superar um mar de barcelonistas que se jogava à frente do gol. 4×1. O que ninguém acreditava havia se tornado realidade.

O Barcelona não teve alternativa senão ir ao ataque, mas sem sucesso. No apito final do árbitro, os jogadores do Metz mal conseguiam se manter em pé, tamanho o esforço durante os 90 minutos. A única exceção era o goleiro Ettore, que reuniu forças para correr em direção a Schuster e perguntar: “Onde está meu presunto?”

Depois da euforia provocada por uma virada tão inacreditável, as coisas voltariam ao seu estado normal. O Barça se recuperaria do baque sem dificuldades, conquistando ainda naquela temporada o título do Campeonato Espanhol. O Metz não teria vida longa na Recopa Europeia, sendo eliminado logo na fase seguinte, contra o Dynamo Dresden. Mas a história já estava escrita, e ninguém apagaria o dia em que onze guerreiros de vinho superaram mais que um clube.

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