Você já viu aqui no Alambrado o quanto as guerras já influenciaram o futebol mundial. Do cancelamento de Copas do Mundo até a paralisação de torneios nacionais, dificilmente alguém passa impune ao contexto bélico dos conflitos. Mas o que aconteceria a alguém que se negasse a participar desse cenário, colocando a própria carreira em risco?
Poucos tiveram a audácia de dizer “não” nesse período onde muitos eram obrigados a obedecer qualquer ordem. E no futebol, um mundo em que os atletas são normalmente relacionados à alienação, a situação não é diferente. Mas um homem desafiou essa lógica para evitar fazer parte do conflito armado.
O nome desse homem era Leonízio Fantoni, mas no Brasil sua fama veio por meio de outra alcunha: Niginho. Nascido em Belo Horizonte em 1912, o filho de italianos que vieram ao país no início do século XX em busca de uma vida melhor parecia destinado ao mundo da bola desde cedo.
O esporte corria nas veias da família Fantoni. O irmão mais velho, João (apelidado de Ninão) e o primo Otávio (o Nininho) já atuavam pelo Palestra Itália-MG quando Niginho deu seus primeiros passos na carreira futebolística. O clube, que anos depois se tornaria o Cruzeiro, ainda contaria com outros membros da família Fantoni em seus quadros. Mas foquemos em Niginho.
Com 14 anos ele já fazia parte dos times de base do Palestra, e aos 17 já compunha o grupo dos profissionais. Jogando no comando do ataque, não demorou para cair nas graças da torcida. Com 1,88m de altura, se sobressaía fisicamente e aterrorizava os defensores adversários por conta de seu estilo de jogo físico e impetuoso.
Não demorou para ganhar o apelido de “Tanque”, algo que se propagou com ainda mais força na campanha do tricampeonato mineiro do Palestra, em 1930. No ano seguinte, Niginho seria o artilheiro do campeonato com 15 gols, conquistando ainda mais o carinho da torcida. O céu parecia o limite.
Tanto destaque não passou despercebido. Por conta do desempenho e de sua ascendência italiana, Niginho chamou a atenção da Lazio, que o contratou em 1932. No time romano, ficaria conhecido como Fantoni III, formando uma espécie de dinastia com seus parentes que também já haviam defendido a equipe alviceleste.
Era a época da “BrasiLazio”, um período em que o clube resolveu investir em jogadores brasileiros com ligações com a Itália. Niginho seria um dos destaques do time que contava ainda com Rato, Amílcar, Del Debbio (todos ex-Corinthians) e Pepe e Duílio (ex-Palestra-SP). Chegou a marcar quatro gols em um duelo contra o Milan, seu auge com a camisa azul.
Mas o momento decisivo da carreira do Tanque viria em 1935. Naquele ano, o exército de Benito Mussolini participavam de um conflito na Abissínia, atual Etiópia. por ter dupla cidadania, Niginho foi convocado para fazer parte das tropas fascistas lideradas pelo ditador.
Mas o artilheiro não queria relacionar seu apelido de “Tanque” a algo além de seu desempenho em campo. Não estava à vontade para lutar uma guerra que mal entendia, em um país que não conhecia, por gente que não o representava. E disse “não”, correndo o risco das já conhecidas retaliações do regime autoritário.
Niginho sabia que não teria mais como viver na Itália na condição de desertor, e arquitetou um plano para fugir do país com a esposa Ana. Cruzaram a fronteira com a França, passaram por Lisboa e retornaram ao Brasil são e salvos em 1936. Reza a lenda que a viagem de volta foi bancada por uma noite de sorte em um cassino português.
De volta à sua terra, teve breve passagem pelo Palestra Itália-SP em 1936, com apenas seis jogos disputados. Mas os seis gols marcados ajudariam o clube a conquistar o título estadual daquele ano. Transferiu-se para o Vasco, e as atuações destacadas garantiram um lugar na seleção que disputaria a Copa de 1938.
Niginho seria uma opção no banco de reservas para substituir o genial Leônidas. E por mais que o Diamante Negro desse poucas brechas para perder seu lugar no time, a tal chance poderia vir nas semifinais, quando o técnico Ademar Pimenta resolveu poupá-lo. Seria a chance de Niginho, se não fosse o adversário em questão: justamente a Itália de Mussolini.
Os italianos alertaram a FIFA sobre uma irregularidade com os documentos do atleta, que ainda estaria vinculado à Lazio e por isso não poderia ter ido jogar no Brasil. Com isso, o artilheiro foi impedido de jogar as semifinais. Sem Leônidas e Niginho, o Brasil não suportou o bom time italiano comandado por Meazza e foi derrotado por 2×1.
O drama não abalou Niginho. Voltou para o Palestra-MG em 1939, conquistando o seu período de maior sucesso como jogador de futebol, quando marcou 207 gols em 257 partidas. Ganharia ainda o apelido de “Carrasco dos Clássicos”, por conta do desempenho avassalador em jogos desse tipo: É até hoje o maior artilheiro celeste do duelo entre Cruzeiro x Atlético-MG, com 25 gols, além de outros 47 tentos contra o América-MG.
Em 1947, satisfeito com a idolatia conquistada, Niginho decidiu dar um basta em sua carreira de atleta. Ainda teve sucesso como técnico, conquistando quatro títulos mineiros pelo Cruzeiro. Faleceu em 1975, aos 63 anos, depois de desfrutar tudo o que o futebol pode lhe oferecer. E de saber que a guerra não iria ditar seu jeito de viver.