Já eram 11h da manhã quando Luis Tapia organizava a terceira planilha do dia. Trabalhava em uma grande empresa de logística, responsável por boa parte dos containers transportados pelo Canal do Panamá, entre América do Norte e América do Sul.
Apesar da grandeza da sua empresa, Tapia era apenas um auxiliar de escritório. O mais eficiente da companhia. Seu trabalho era quase braçal – tinha de comparar os checklists de saída com os de chegada, verificando se havia algo errado.
Por dia, Tapia preenchia cerca de 40 planilhas. Estava muito longe de sua meta pessoal naquela manhã. Parecia ausente, ansioso. O mesmo vírus aparentemente também havia contaminado outras pessoas da empresa.
O vírus era a rodada derradeira das Eliminatórias da Copa. No final da tarde, a seleção panamenha enfrentaria a Costa Rica. Se vencesse, conseguiria ao menos uma vaga na repescagem.
Nunca sua seleção havia chegado tão perto de disputar uma Copa. Para Tapia, seria a coisa mais extraordinária do mundo. A cada quatro anos, assistia pela TV ao Mundial, imaginando como seria ver seu país parar para assistir a um jogo de seus conterrâneos no maior torneio do planeta. Pouco importaria se fosse contra uma seleção pequena, ou se viesse aquela sonora goleada.
Foi o primeiro da fila a comprar o ingresso, e colocou a expectativa no alto. A Costa Rica já estava classificada, pouco importava o jogo a eles. Para Tapia, era vencer e ir à repescagem. Nem contava com uma vaga direta. Para isso, os EUA precisavam perder. Algo impensável.
Saiu do escritório com apenas oito planilhas preenchidas e correu para o estádio. A festa era incrível. Jamais havia visto tamanha mobilização por um esporte em seu país.
Mas bastaram 36 minutos para as primeiras lágrimas caírem sobre o rosto de Tapia. Lançamento para Venegas, e o costa-riquenho encobriu o goleiro panamenho. Não eram lágrimas de felicidade, eram de tristeza.
“Mais uma vez”, pensou o torcedor. Ao final do primeiro tempo, cogitou ir embora. Sua desilusão era muito grande – assim como a de milhares ao seu redor. Já pensava nas planilhas que havia deixado de preencher e que o sobrecarregariam no dia seguinte.
“Copa não é para nós”, falou para si mesmo. Mesmo decepcionado, acabou ficando. E viu todos esses pensamentos sumirem para muito longe em minutos confusos. Escanteio, muita gente na pequena área, disputa de bola, jogadores no chão, juiz apontando alguma coisa.
Levou algum tempo para o estádio todo entender que era gol. Tapia estava exatamente atrás da meta, não viu a bola cruzar a linha, mas pouco importava. O Panamá estava vivo, de novo. “Os EUA estão perdendo”, ouviu alguém comentar na arquibancada.
Que dirá quando Roman Torres fuzilou a rede adversária aos 87 minutos. A felicidade foi tão intensa que simplesmente nada passou pela cabeça de Tapia, a não ser comandos para pular, gesticular o braço e abraçar desconhecidos.
Aquele gol representava não apenas uma repescagem. Mas sim o passaporte carimbado para a Rússia. “Acabou o jogo dos EUA”, alguém disse, para nova rodada de comemoração na arquibancada. Foram minutos tensos. Costa Rica atacando, e o Panamá retrancado. E nada mudou até o final.
A festa foi inacreditável. Eram duas da manhã e Tapia nem pensava em ir para casa. Nem pensava em planilhas. Estava na rua, havia feito uma dezena de amigos novos e ainda ouviu alguém falar que o presidente havia decretado feriado. Voltou para casa apenas com o sol nascendo.
20 anos depois, Luis Tapia já não era mais auxiliar de escritório. Gerenciava uma equipe na mesma empresa. Suas tarefas iam de validar digitalmente relatórios a passar instruções para seus funcionários. Digitalmente.
Em uma manhã qualquer, ele trocava mensagens com um jovem de sua equipe e pediu que ele verificasse algumas inconstâncias que o sistema havia verificado em certos checklists. Para isso, precisava ir pessoalmente às docas.
“Você não poderia deixar esta tarefa com outra pessoa?”, pediu o jovem. “Hoje é o último dia das Eliminatórias, e jogaremos em casa”. Tapia pareceu surpreso com a informação. “É verdade? Não fazia ideia disso. Achei que já estivéssemos classificados”, disse.
O jovem confirmou. Desde quando a Copa do Mundo passou a ser jogada com 48 times, o Panamá era figura carimbada na competição, sempre com muita antecedência.
“Mas gostaria de ir mesmo assim, gosto de futebol. Já tenho até ingresso comprado. Se for ao porto, não terei tempo”, argumentou o rapaz. O pedido foi negado por Tapia. Para o gerente, seu trabalho era mais importante do que um jogo sem valor algum com público irrelevante.
Passaram-se outros 20 anos. Um aposentado Tapia cuidava de seu neto em casa enquanto assistia um jogo de seu Panamá em uma obsoleta TV. Recusava-se a participar digitalmente da partida por meio de realidade virtual. Para ele, uma bobagem. Naquela noite, o público virtual era pequeno, somente três mil pessoas, mesmo com uma partida tão decisiva.
A criança estava distraída em uma competição de eSports em seu próprio RV. Já o velho parecia irritado. “O que virou essa seleção? No meu tempo, tinha garra”, esbravejava.
O humor de Tapia mudou radicalmente quando o Panamá balançou as redes. O velho comemorou, mas logo viu que o juiz estava consultando o árbitro de vídeo. Anulou, alegando mão. O velho bufou no sofá.
Quando o árbitro apitou o final do jogo, decretando a vitória de Curaçao, que garantia sua vaga na Copa, e a eliminação do Panamá, Tapia desligou a TV com violência. “Não acredito em tanta incompetência. 64 times em uma Copa e esses inúteis não conseguem nem estar lá”, desabafou.
Tirou o RV do garoto, que parecia confuso. “Você viu o que aconteceu?”, perguntou. O garoto deu de ombros.
Começou a contar a história do dia em que conferia planilhas e que saiu para o estádio. Que um gol irregular lhe deu esperança. Que enfim havia uma classificação heroica e uma festa estrondosa.
Nada parecia empolgar o garoto, disperso. Ao final da história, perguntou ao avô se podia voltar ao RV. Tapia murmurou alguma coisa e foi para o quarto.