Expressões coletivas são coexistentes à espécie humana. É preciso se manifestar de alguma forma para que a presença de um grupo fique registrada na história do mundo. De preferência, que seja vista e ouvida pelo máximo de pessoas possível.
Danças para espantar o mal. Cantigas de roda, coreografias ou grandes apresentações, não importa. Pinturas que retratam civilizações, seja em paredes de caverna, em telas canvas ou em prédios públicos abandonados.
Independente do meio, que é a mensagem, essas manifestações de fato atraem o interesse de outras pessoas, relacionadas ou não àquele contexto. O suficiente para existir um palco, onde está a ação, e uma plateia.
Isso acontece nas artes. Acontece nas telecomunicações. Acontece na rua. Aos protagonistas, cabe o espetáculo. Ao público, a passividade. Reações são bem-vindas na maioria das vezes, mas não são fundamentais para o show. Especialmente se você está atrás de uma televisão.
Há relativamente pouco tempo, surgiu na sociedade moderna uma forma revolucionária de expressão. Dezenas de milhares de pessoas reunidas em um mesmo local, com um palco enorme e esvaziado, composto por 22 artistas. O restante fica amontoado ao redor, em grandes arquibancadas de concreto.
Mas a separação desses dois grupos só se dava por frágeis arames de ferro entre a grama e o cimento. Nenhuma barreira física era capaz de conter a sintonia transcendental existente entre as duas seções.
Em um estádio, só existe um palco. Mas há espetáculo dentro e fora dele. Cantigas e gritos de guerra ensaiados fazem a trilha sonora. Danças para espantar o mal. Coreografias com as mãos para o alto, com avalanches, com poropopós. E nem precisa de ensaio.
O espetáculo audiovisual era fortalecido por pinturas em panos gigantes fixados em mastros. Em papel picado que reflete a luz. Em pó de arroz, para os mais antigos. Em papéis higiênicos e serpentinas. Em fogos e sinalizadores, que promoviam uma sinestesia tão impressionante quanto a de uma aurora boreal.
Eles representam um grupo, uma região, uma religião. Uma causa social, uma causa cultural. Ou uma identidade em comum que simplesmente não tem qualquer ligação explicável que não seja as cores e o escudo de um time.
Nesse espetáculo, os artistas olham para o público e se surpreendem. Sabem que eles não são uma extensão do campo. O campo é que é uma extensão das arquibancadas. Não há qualquer sentido em partidas de futebol sem plateia. Ou com plateias sem vida.
A cultura do medo foi pouco a pouco higienizando as arquibancadas. Sob o pretexto de brigas, que nada tinham a ver com as festas, ações e objetos foram proibidos. A solução rápida, fácil e covarde: acabar com o espetáculo arbitrariamente. Pouco importa se mortes acontecem fora do estádio, com ou sem mastros. Não faz diferença se é um inofensivo sinalizador de queima ou se é um perigoso sinalizador de disparo. Sobrou até para o pobre pó de arroz.
Não vivemos em 1984, mas a vigilância deixou de vir somente de engravatados ou fardados, como era de se esperar, e passou aos próprios torcedores. Acenda um sinalizador e ganhe uma vaia. A repressão pode estar ao seu lado, de seu igual. Não há debate, não há diálogo, não há entendimento.
Hoje, é comum chamar de espetáculo torcedores levantando para o alto pedaços de papel que já estavam cuidadosamente colocadas em suas cadeiras. O tal do mosaico. Chamar de espetáculo faixas de torcida que foram feitas e colocadas no estádio por funcionários do clube. Ou por patrocinadores.
Chamar de espetáculo públicos raivosos, que não cantam, não dançam e exigem de seu time como exigem de um produto comprado em uma loja de departamentos. Que estão ali por motivos que nem eles próprios sabem responder. Ou que talvez saibam, mas não entendem. E nunca vão entender.