O ano era 1993. Diego Maradona, já reconhecido mundialmente como um dos melhores jogadores da história, desembarcava em Rosario para atuar pelo Newell’s Old Boys. Empolgado, um repórter destacou ao “Pibe” a alegria de ver o melhor de todos jogar na cidade. Maradona, mesmo sem ser um grande fã da falsa modéstia, respondeu: “Pelo que dizem, o melhor de todos já jogou aqui há muito tempo. Um tal de Carlovich.”
Assim como muitas histórias do esporte, o diálogo acima se tornou parte do folclore do futebol argentino. A lenda de Tomás Carlovich, o genial meio-campista que poucos tiveram o prazer de ver, deixava de ser exclusividade dos rosarinos e se tornava parte do imaginário de todo torcedor argentino.
Não faltam elementos para explicar o fascínio pela história de Carlovich. “El Trinche” – como foi apelidado ainda na infância – era o sétimo filho de uma família de ciganos iugoslavos que fugiu de seu país durante a Segunda Guerra Mundial.
Nasceu em 1949, em Rosario, e para ele sempre ficou claro que ali era o melhor lugar do mundo para se viver. Mesmo com condições precárias, comuns nas trajetórias de jogadores de futebol, Carlovich tinha uma certeza: O futebol era o que ele amava fazer, e se possível em seu local preferido.
Aos 14 anos ingressou nas categorias de base do Rosario Central, um dos grandes da cidade. Já impressionava a todos pela capacidade de se desvencilhar dos marcadores, com uma habilidade muito acima da média dos volantes normais.
El Trinche nunca passava despercebido em campo. Seja pelo estilo clássico de jogar com a cabeça erguida ou pelo visual cigano, com cabelos longos e barba desgrenhada, chamava a atenção sempre que aparecia.
Estreou pelo Rosario Central em 1969, com 20 anos. Apesar da técnica inquestionável, teve sua trajetória no clube prejudicada pela falta de empenho nos treinos. Carlovich só queria jogar, mas não parecia muito disposto a enfrentar a forte carga de exercícios físicos e cobranças dos treinadores dos “Canallas”.
Depois de passagens curtas pelo Flandria e o Rivadavia, o meia retornou a Rosario para jogar pelo modesto Central Córdoba, que na época disputava a terceira divisão. E foi lá que a lenda cresceu. Mesmo jogando em campos minúsculos em partidas que nem sequer eram filmadas, Carlovich passou a virar assunto nas rodas de discussões.
Logo na primeira temporada, foi o destaque do time que conseguiu o acesso para a Primera B. Cada vez mais pessoas compareciam ao estádio Gabino Sosa para vê-lo jogar. E não era incomum encontrá-lo batendo papo com os torcedores do lado de fora do estádio após os jogos.
Mesmo sem jogar em um dos grandes da cidade, El Trinche já havia se tornado um ídolo local. Sua forte identificação o colocou como um símbolo rosarino, a ponto de ser o único jogador fora do eixo Rosario Central/Newells a ser chamado para fazer parte do combinado da cidade, que enfrentaria a seleção argentina em amistoso de preparação para a Copa de 1974.
A seleção de Rosario contava com ídolos como Kempes, Zanabria e Daniel Killer, mas Carlovich roubou a cena na partida. Reza a lenda que, atendendo o pedido de um torcedor, aplicou neste jogo o drible pelo qual ficaria conhecido pelo resto da carreira.
Ao receber a bola, deu uma caneta no marcador que veio ao seu encontro, e ao completar o drible, colocou entre as pernas do defensor mais uma vez. O movimento ficou conhecido como “caño duplo”, e se tornou marca registrada de Carlovich.
O primeiro tempo da partida terminou 3×0 para os rosarinos, e o meio-campista foi substituído no intervalo a pedido do técnico da seleção argentina, para não prejudicar a moral de seus jogadores.
Esse poderia ter sido o grande trampolim da carreira do atleta. Brilhar contra os melhores do país, atrair a atenção de todos. Mas por motivos que só os deuses do futebol sabem explicar, não foi. Carlovich voltou ao Central de Córdoba, onde continuou com seu status de lenda até 1986, quando encerrou a carreira, depois de uma breve passagem pelo Colón de Santa Fé.
Muitas partes da história parecem não fazer sentido. Por que alguém de tamanha habilidade não se tornou mais conhecido? Por que não fez sucesso em clubes maiores?
Perguntas que só alimentam o status de uma lenda. Assim como os depoimentos de gente como José Pekerman, que classificou Carlovich como o melhor volante que já viu. Ou de César Luis Menotti, que disse que Carlovich “carregava o gene do futebol de Rosario, que hoje em dia pode ser visto em Messi”.
Será que ele foi tudo isso mesmo? A escassez de imagens e registros confiáveis da época podem tornar a história uma simples peça do folclore, algo manipulado para engrandecer os feitos de alguém ou simplesmente para ter alguma anedota na mesa de bar. O tipo de história que faz o futebol ser o que é.