O folclore do futebol conta inúmeros casos de situações em que o esporte foi uma ferramenta social importante, chegando ao ponto de interromper conflitos bélicos. Não é segredo, por exemplo, a história do Santos de Pelé que interrompeu uma guerra ao visitar a Nigéria, ou a história de Didier Drogba, que juntou os povos da Costa do Marfim.
Reconhecer a influência do esporte bretão no cenário político e até mesmo na formação cultural de determinados grupos é importante para entender o charme que o jogo causa. Na Somália, um grupo compreendeu essa importância. Mas, infelizmente, utilizaram a informação da pior maneira possível.
O Al-Shabab, ligado à Al Qaeda, era o grupo islâmico mais influente entre os insurgentes que apareceram no período de guerra civil na Somália. Foi quem ditou as regras por algum tempo em uma parte considerável do país africano, cenário de turbulências e confrontos durante décadas.
O povo somali, apaixonado por futebol, acabou alijado por anos desse encantamento. Tudo por conta de uma ordem baixada pelo Al-Shabab, proibindo que os cidadãos não apenas praticassem, mas também assistissem qualquer partida nas áreas controladas pelos rebeldes.
Na concepção do Al-Shabab, o futebol era uma distração, que tinha o poder de afastar os jovens somalis da missão de conquistar o poder pleno no país.
Com isso, vários talentos do país acabaram sendo recrutados pelo regime, enquanto outros temerosos por suas próprias vidas, tiveram que simplesmente abandonar o esporte.
A única forma de assistir os jogos era fazê-lo clandestinamente, com antenas improvisadas e tomando o máximo de precaução para evitar que os soldados percebessem algo diferente durante suas rondas.
A situação chegou no limite durante a Copa de 2010. Ao tentar assistir uma das partidas do torneio, que era então disputado na África do Sul, dois jovens foram mortos sob alegação de desacato. Suas mortes foram usadas como exemplo pelo Al-Shabab, para mostrar que a determinação não era brincadeira.
O governo da Somália, incapaz de agir no território dominado pelos insurgentes, manifestou sua repulsa ao episódio e exibiu outros jogos do torneio em salas de cinema localizadas na parte pacificada do país.
Poucos meses depois, um atentado vitimou uma das maiores promessas do futebol local. Abdi Salan Mohamed Ali, de apenas 20 anos, morreu após a explosão de um carro-bomba, juntamente com outras nove vítimas.
Dirigentes de clubes locais e até mesmo jornalistas esportivos sofreram com as perseguições do regime. A ideia era clara: abafar qualquer fagulha que o futebol pudesse provocar para tirar o foco do confronto.
No entanto, talvez por coincidência, ou até por consequência, o Al-Shabab começou a perder força enquanto o futebol voltou a crescer no país. Abdisalam Ibrahim se tornou um herói nacional ao ser o primeiro somali em um clube da Premier League, no caso o Manchester City.
Além disso, o campeonato local foi retomado, contando com a presença de reforços vindos de outros países da África, e clubes das quatro regiões do país. A federação de futebol também incentivou a prática do esporte, com campanhas como a “largue a arma e pegue uma bola”, buscando trazer as crianças de volta para os campos e quadras.
A seleção nacional voltou a competir em nível internacional, chegando a disputar as eliminatórias para a Copa do Mundo de 2014 e 2018, sem sucesso. Apesar da afeição ao esporte, a jornada até um lugar de destaque ainda é longa. Mas isso parece ser o de menos, porque ao que tudo indica, uma nação tão sofrida parece estar disposta a trocar a bala pela bola.