O futebol é um dos raros fenômenos no mundo capaz de unir culturas completamente diferentes. A frase é clichê, mas faz todo o sentido. A forma de se acompanhar o esporte é totalmente diferente no Brasil e no Japão, por exemplo, apesar de a paixão ser a mesma. Pudemos acompanhar isso de perto na Copa do Mundo de 2014.
Que dirá entre Brasil e Irã. Um dos países mais extremistas do mundo em relação à interferência da religião no estado. Onde toda a legislação é baseada em primeiro lugar por interpretações do Alcorão.
Nos estádios, por exemplo, é expressamente proibida a entrada de mulheres. Não porque está expressamente determinado no livro sagrado do Islã, mas sim porque querem preservá-las das obscenidades ditas pelo público em eventos esportivos. Neste caso, influência indireta da religião.
É esse o plot de Fora do Jogo (Offside, 2006), dirigido pelo iraniano Jafar Panahi. Tomando por base um evento real, com narrativas fictícias, o filme tem como pano de fundo o jogo decisivo das Eliminatórias para a Copa de 2006, entre Irã e Bahrein, disputado em Teerã. O time da casa precisava apenas de um empate para confirmar a vaga no Mundial da Alemanha.
Em meio a isso, algumas mulheres apaixonadas pelo esporte tentam se infiltrar na fanática e empolgada multidão de homens que acompanhariam o jogo. Não conseguem e acabam presas pelos guardas, permanecendo do lado de fora do estádio.
Aparentemente simples, o roteiro tem, na verdade, múltiplas vertentes. É um estudo crítico sobre a constrangedora situação pela qual passam as mulheres do Irã. É um retrato visual sobre como todas as pesadas questões sociais e religiosas ficam em segundo plano durante os poucos, mas valorosos momentos de festa coletiva proporcionada pelo esporte.
A maior qualidade de “Fora do Jogo” é a sutileza com a qual o tema é tratado. Esqueça reflexões, simbolismos e dramas densos, característica com a qual o cinema iraniano ficou erroneamente rotulado. Aqui, há até certo tom de comédia – com o qual Panahi acertadamente ridiculariza a proibição a mulheres em jogos de futebol masculino.
Questionados sobre a proibição pelas presas a todo momento, os guardas sequer citam o Alcorão. No caminho, soltam o cômico argumento de que as mulheres não poderiam ouvir os desaforos verbais proferidos pelos torcedores contra os adversários e contra a arbitragem. Até chegar ao simbólico “porque não”. Cumprem ordens sem refletir sobre elas.
Com a classificação iraniana, a barreira entre guardas e presas é quebrada. A festa nas ruas acaba por contagiar até aqueles que não acompanham o esporte mais popular do país. Todos passam a ser iguais, sem hierarquias ou subordinações.
Nove anos após o lançamento da produção, pouca coisa mudou na legislação iraniana. Contestador, o filme fez muito mais sucesso no ocidente do que em seu país, onde gerou polêmica. As mulheres seguem sem poder frequentar eventos esportivos. No máximo, é permitido que estrangeiras acompanhem certos jogos.
O nulo Joseph Blatter, preocupado em não perder votos, não tomou qualquer atitude que não fosse as costumeiras declarações políticas na imprensa. Mas em um aspecto o filme de Panahi certamente contribuiu: ainda que timidamente, já existe um debate no país sobre a derrubada da proibição. Partindo das próprias mulheres. É só uma questão de tempo.