A invasão do xeique em sete detalhes

A invasão do xeique em sete detalhes

Destrinchamos a icônica invasão a campo do príncipe do Kuwait, Al-Sabah, que conseguiu anular um gol francês contra sua seleção na Copa de 1982

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Ah, a Copa do Mundo. Nações duelando entre si, atletas suando por seus compatriotas, e não pelo salário no fim do mês. Uma guerra particular entre dois grupos, mas restrita às quatro linhas do campo. Que, assim como a quarta parede do teatro, formam uma barreira invisível e inviolável entre os jogadores e os espectadores. Certo?

Errado. Arquibancada e campo estão intrinsecamente ligados em uma partida de futebol. Um influencia o outro. Que dirá em um Mundial, quando não há apenas a paixão por um time envolvida, mas também os valores patrióticos de cada um.

Há momentos em que essa relação se extrapola. E vira folclore. Invasões ao gramado acontecem sempre, mas, felizmente, não acrescentam em nada na história do jogo. Diferentemente do episódio mais icônico da história das Copas, acontecido em 1982.

Na ocasião, enquanto França e Kuwait se enfrentavam na fase de grupos do torneio disputado na Espanha, o príncipe do país asiático, o xeique Fahad Al-Sabah, resolveu invadir o campo para discutir com o juiz sobre um gol supostamente irregular dos europeus. E conseguiu a anulação.

Você provavelmente já ouviu falar dessa história, com essa descrição simples. Mas o que fortalece o momento mais folclórico são os detalhes, devidamente destrinchados pelo Alambrado nas linhas abaixo. Separe as pipocas.

O contexto

Soberano desde a década de 1960, o Kuwait passava por um momento político conturbado, algo característico da região do golfo pérsico. Muito por conta do seu vizinho Irã, que havia acabado de passar por uma revolução, em 1979.

A riqueza de petróleo na região despertava o interesse dos EUA, que já havia perdido espaço com a revolução iraniana, mas seguia com relações estreitas com Kuwait e Iraque. A discrepância nos pontos de vista entre Iraque e Irã acabou inevitavelmente provocando uma guerra entre os dois países.

Localizado entre os dois, o Kuwait precisava escolher um lado. Decidiu pelo Iraque, obviamente, e passou quase uma década nessa situação. Contribuiu para a militarização do governo, que contava com generais em várias de suas pastas.

No esporte, estava nada menos que Al-Sabah. Grande entusiasta dos esportes em geral, o xeique fundou o Comitê Olímpico do Kuwait, do qual tornou-se presidente. Investiu pesado em diversas modalidades, conseguindo retorno a curto prazo em muitas delas.

O principal foi no futebol. Contribuiu para a classificação do Kuwait para uma Copa do Mundo pela primeira vez em sua história, numa época em que apenas duas vagas eram reservadas às seleções da Ásia e da Oceania.

O jogo

Azarão, o Kuwait foi para o Mundial com muita vontade de surpreender. Era a chance de desviar o país do foco da guerra e dar alguma alegria a seus cidadãos. Mas o sorteio foi cruel com o time asiático: caiu em um grupo formado por Inglaterra, França e Tchecoslováquia.

Valentes, os kuaitianos não desanimaram. Mostraram força na estreiae empataram em 1 a 1 com os tchecoslovacos, dando indícios de que não seriam saco de pancadas do grupo da morte.

O segundo jogo era com a França, que vinha de derrota para a Inglaterra. Não seria nada fácil. Do outro lado estavam os três mosqueteiros – Girèsse, Tigana e Platini. No intervalo, os franceses já venciam por 2 a 0.

Logo aos três minutos do segundo tempo, veio o terceiro, anotado por Six. Mas o Kuwait ainda esboçaria uma reação. Aos 20 minutos, Al-Buloushi descontou e recolocou a equipe no jogo.

Contudo, em forma de balde de água fria, o quarto tento francês veio logo depois, por Girèsse. E eis que Al-Sabah, que assistia ao jogo da arquibancada, resolvera agir contra a humilhação. Começava a treta.

O apito

Na jogada, Platini deu um magistral passe para Girèsse, que saiu na cara do gol e não titubeou. A posição do atacante era completamente legal. Contudo, é possível ouvir na gravação da partida um estranho apito logo após o passe.

Os atletas franceses disseram nas entrevistas pós-jogo que não ouviram absolutamente nada. Já o repórter da Globo presente no estádio, Francisco José, alega que conseguiu ouvir, mas que o barulho claramente veio da arquibancada. Uma imagem de outro ângulo não deixa dúvidas: o árbitro soviético Miroslav Stupar não só não apitou, como ainda fez sinal para os jogadores seguissem o lance.

Há ainda a não provada versão dos detetivões que alguns dos presentes – sem se identificar, por motivos óbvios – pensaram ter visto um apito pendurado no pescoço de Al-Sabah. Vai saber.

 A invasão

Enquanto Girèsse e seus companheiros comemoravam o gol, os atletas do Kuwait não paravam de olhar para as tribunas. Eles se reuniram à beira do gramado e pareciam não saber o que fazer. Lá de cima, Al-Sabah gesticulava como um louco, ordenando que seus atletas deixassem o campo.

O jogo ficou parado durante o impasse. O árbitro tentava descobrir o que estava acontecendo, aparentemente sem sucesso. Foi quando Al-Sabah resolveu passar a limpo.

Deslocou-se para a área interna do estádio e, minutos depois, apareceu na entrada do campo acompanhado de uma dezena de militares kuaitianos. Assustados, os árbitros e os poucos seguranças presentes não fizeram questão alguma de tentar impedir a situação.

Al-Sabah se indignou com injustiça a seu honroso Kuwait na Copa de 1982 e foi cobrar o árbitro (Foto: Reprodução)
Al-Sabah se indignou com injustiça a seu honroso Kuwait na Copa de 1982 e foi cobrar o árbitro (Foto: Reprodução)

O xeique dirigiu-se ao árbitro, e, com dedo em riste, esbravejou argumentando que seus jogadores haviam ouvido o apito e parado de acompanhar a jogada, acreditando ter sido marcado o impedimento. Algo suficiente para anular o legalíssimo gol francês, no raciocínio do príncipe.

Stupar provavelmente não entendeu nenhuma palavra dita por Al-Sabah, mas certamente entendeu a gravidade da situação. Afinal, não é qualquer dia que se leva bronca de um xeique descontrolado à beira do gramado cercado por diversos capangas mal-encarados.

O bigode

Em meio ao caos, um personagem curioso quase passa despercebido: Carlos Alberto Parreira, o técnico do… Kuwait. Muito mais novo, e com um irreconhecível bigode, o futuro treinador da seleção brasileira parecia não entender muito bem a situação e não saber direito o que fazer.

Andava de um lado para o outro, conversando com alguns jogadores, esperando uma definição. Ele estava no controle da equipe desde 1978, mas, aparentemente, subordinado ao intempestivo xeique kuaitiano.

No centro da confusão está o futuro campeão mundial de 94, Carlos Alberto Parreira, então técnico do Kuwait (Foto: Reprodução)
No centro da confusão está o futuro campeão mundial de 94, Carlos Alberto Parreira, então técnico do Kuwait (Foto: Reprodução)

Parreira ainda era pouco conhecido no Brasil. Havia treinado o Fluminense em 1975, com pouco brilho, na sua primeira experiência como técnico. O Kuwait era o segundo, e o brasileiro já havia conseguido a proeza de classificar o time para o Mundial.

A decisão

Stupar sabia que não havia apitado o lance. Mesmo assim, sob a ameaça de que o Kuwait deixaria o gramado, resolveu voltar atrás. Pode-se concluir, entretanto, que o soviético não estava lá muito preocupado se todos os kuaitianos deixassem a cancha, mas que o encontrassem novamente após a partida…

Comunicado da decisão, o xeique voltou para as tribunas imediatamente. Os franceses, receosos, nem reclamaram muito. E o jogo foi reiniciado com o bola ao chão mais disputado da história – vencido pelo zagueiro do Kuwait, que conseguiu bicar a bola para frente segundos antes de seu adversário.

Feliz da vida, xeique sorriu para foto após conseguir anular o gol francês (Foto: Reprodução)
Feliz da vida, xeique sorriu para foto após conseguir anular o gol francês (Foto: Reprodução)

O castigo

No que o protesto do xeique interferiu? Em absolutamente nada. Os franceses seguiram vencendo, e, para piorar, marcaram o quarto gol novamente aos 44 minutos da segunda etapa. Dessa vez, sem apito.

O Kuwait, por fim, perderia o terceiro jogo para a Inglaterra e se despediria da competição na lanterna do grupo. Como castigo moral, a seleção jamais voltou a disputar uma Copa do Mundo. Como castigo real, Al-Sabah foi suspenso do futebol pela Fifa, assim como o árbitro soviético.

O xeique acabou falecendo nove anos depois. Foi morto durante uma invasão do Iraque ao Kuwait – os países entraram em guerra na década de 90, quando o ditador Saddam Hussein resolveu anexar o vizinho ao seu território. Al-Sabah acabou assassinado por militares iraquianos.

Mas deixou uma herança. Seu filho, Ahmed Al-Sabah, também nutre um gosto pelo esporte e é o atual presidente do Conselho Olímpico Asiático, além de membro do Comitê Olímpico Internacional. É tão importante quanto para o esporte kuaitiano.

Aguardamos ansiosamente pela classificação do Kuwait para a Copa do Mundo de 2018.

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