Goleiros costumam ser estranhos por natureza. À margem na maior parte do jogo, com chances de se destacar somente quando o restante do time falha, aceitando o risco de colocar a reputação em risco por um erro que seja, tudo conspira para que os arqueiros sejam uma espécie de apátridas no mundo da bola. E em uma posição conhecida pelas estranhezas, o argentino Carlos Roa pode ser considerado o dono de uma carreira bem incomum.
Nascido em Santa Fé, começou no futebol jogando como atacante nas categorias de base do Gimnasia de Ciudadela. Depois de perceber sua vocação debaixo das traves, teve sua primeira chance em 1988, no Racing, substituindo o lendário Ubaldo Fillol em uma partida contra o River Plate. Foi na Academia que ele enfrentou o primeiro grande obstáculo da carreira, após contrair malária em uma viagem de pré-temporada para a África.
Recuperado da doença, transferiu-se para o Lanús, clube em que atraiu os olhares do Mallorca. Na Espanha, cresceu a fama e o destaque dado ao “Lechuga” (“alface”, em português). Adepto da dieta vegana, incomum no meio esportivo por excluir do cardápio qualquer alimento derivado de animais, Roa ajudou o time a subir de nível dentro do futebol local, passando a bater de frente com os grandes e incomodar nas competições importantes.
Na Copa do Rei de 1997-98, por exemplo, a equipe chegou até a final, contra o Barcelona. Com o empate por 1×1, a partida foi para os pênaltis. Após defender os chutes de Celades, Rivaldo e Figo, Roa relembrou os tempos de atacante e converteu uma das cobranças. Apesar do esforço, os culés terminaram com o título.
As boas atuações fizeram com que o goleiro assumisse a titularidade da seleção argentina que disputou a Copa de 1998. Roa não foi vazado durante toda a primeira fase, em jogos contra Japão, Jamaica e Croácia, a surpresa do torneio. A invencibilidade deu moral para o duro confronto das oitavas de final, um histórico duelo contra a rival Inglaterra. Em um jogo com reviravoltas, golaços e polêmicas, a decisão foi para os pênaltis depois do 2×2 no tempo normal e na prorrogação.
A disputa de tiros da marca da cal deu ao goleiro a chance de brilhar. As defesas nos chutes de Paul Ince e David Batty deram a classificação para a Argentina, que acabaria sendo eliminada pela Holanda na fase seguinte.
A temporada 1998-99 serviu para consolidar tanto a ascensão do Mallorca quanto o respeito ao arqueiro. Terceira posição no Campeonato espanhol, time menos vazado e mais um vice-campeonato conquistado, desta vez na Recopa Europeia, em final contra o forte time da Lazio, comandando pelo tcheco Pavel Nedved.
O desempenho de Roa passou a despertar o interesse de gigantes da Europa, em especial do Manchester United, que queria o argentino para ser o substituto de Peter Schmeichel. A proposta de 10 milhões de dólares balançaria qualquer jogador, mas havia uma questão importante no meio do caminho: a religião.
Roa é devoto da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Chegou a atuar com a camisa “1.3”, em referência a Jesus e à Santíssima Trindade. Aos 29 anos, já não via como conciliar a profissão com a fé, o que acabou levando a um anúncio precoce de sua aposentadoria dos gramados. Ele abandonou as luvas para se dedicar à vida no campo e às atividades da igreja, decisão que durou nove meses.
Isso porque em abril de 2000 o arqueiro retornou ao Mallorca para cumprir o restante de seu contrato, estabelecendo a condição de não atuar mais em jogos marcados aos sábados, respeitando uma determinação da doutrina religiosa.
No entanto, Roa nunca mais conseguiu retomar o nível alcançado antes da parada e perdeu o posto de titular para o compatriota Leo Franco. Em 2002, transferiu-se para o Albacete, que estava na segunda divisão espanhola. O clube conseguiu o acesso, porém mais um capítulo dramático seria escrito na trajetória do goleiro.
A descoberta de um câncer nos testículos afastou Roa dos campos por mais de um ano, em função das sessões de quimioterapia e do período de reabilitação. Após se recuperar da doença, ele voltou à terra natal para defende as cores do Olimpo, onde encerrou a carreira.
Dessa vez com as luvas definitivamente aposentadas, Roa acabou seguindo um caminho mais comum dentro de seu ramo, tornando-se treinador de goleiros do River Plate e, depois, do Banfield. Uma das poucas escolhas mais ortodoxas em meio a uma história com tantos pontos atípicos.