Não é segredo para ninguém o abismo entre o futebol jogado na Europa e o que tentamos praticar aqui no Brasil. Mas essa atual temporada parece evidenciar ainda mais o quanto os chamados técnicos “de ponta” no Brasil estão atrás a nível tático e estratégico.
Os dois principais exemplos estão na Inglaterra: Liverpool e Manchester City disputam ponto a ponto uma das edições mais impressionantes do Campeonato Inglês. Nunca dois times tiveram campanha tão irretocável ao final de 37 rodadas.
Enquanto o líder Manchester City conquistou 95 pontos, o vice-líder Liverpool tem 94. O Chelsea, terceiro colocado, possui 71 pontos. Parece irrisório perto dos primeiros colocados.
Mas o fator mais impactante entre as equipes de Pep Guardiola e Jurgen Klopp é que os dois times chamam a atenção por uma produção ofensiva absurda. Respectivamente, Liverpool e Manchester City acumulam 87 e 91 gols marcados – média de quase dois gols e meio por jogo.
No entanto, engana-se quem acredita que essas equipes têm defesas menos confiáveis. Ambos sofreram somente 22 gols nas 37 rodadas – disparadas as melhores defesas não só da Premier League, como também de todas as principais ligas europeias.
Cai por terra a velha impressão de que é obrigatório montar times extremamente conservadores para que a defesa seja sólida o bastante. Para se ter ideia, apesar da atuação insana de ambos os ataques ao longo da competição, o craque da Premier League para os jogadores é Virgil van Dijk, zagueirão holandês do Liverpool.
Em comparação, a terceira melhor defesa da liga inglesa é a do Tottenham – outro time de postura bastante ofensiva – com 37 gols sofridos. Só então aparece o Chelsea, vazado 39 vezes. Time mais defensivo em relação aos demais, mas que também possui apreço pela posse de bola.
Isso se proliferou de uma vez por todas ao longo do Velho Continente. Times de características extremamente ofensivas, mas com defesas muito pouco vazadas. Ou seja, saldos de gols gigantescos.
Nas sete ligas mais relevantes de lá, em seis o líder conta com saldo de gols superior a 50. Se na Premier League a diferença já é elevada, de 65 para Liverpool e 68 para City, na Holanda é de 81 – o Ajax conseguiu anotar impressionantes 111 gols em apenas 32 jogos. Em Portugal, o Benfica já marcou 96 tentos com o mesmo número de partidas.
A única exceção está no futebol da Itália, onde a cultura de um jogo mais conservador está fortemente enraizada e mudanças são vistas com resistência. A campeã Juventus tem saldo de 44 gols, tendo sofrido 25 em 35 jogos. Ainda assim, teve defesa mais vazada que Liverpool e City, mesmo com os ingleses tendo disputado mais partidas até então.
No Brasil, isso parece um futuro muito distante. O Palmeiras foi campeão no ano passado com um saldo de 38 gols. O Corinthians, em 2017, só precisou de 20. Marcou 50 gols, menos da metade dos gols do Ajax, embora tivesse disputado seis jogos a mais.
Na era dos pontos corridos com 20 times, os maiores saldos campeões foram do Corinthians de 2015 e do Cruzeiro de 2013, ambos com 40 após 38 rodadas. E em quase todas as edições o campeão foi a equipe de melhor saldo – a exceção foi o Flamengo de 2009, dono da quarta maior marca daquele ano: míseros 14 gols, a pior de toda a história.
Esse tipo de pensamento – de que é preciso buscar o gol durante toda a partida independentemente do placar – é visto com desconfiança por todas as esferas do futebol brasileiro. Técnicos, jogadores, dirigentes, torcedores e imprensa no geral estão satisfeitos com a popular retranca após abrir a vantagem no placar. 1 a 0 é sempre suficiente.
O que as equipes europeias tentam nos mostrar há mais de uma década, no entanto, é que é fundamental manter a ofensividade e a agressividade até o apito final para conseguir a vitória. O primeiro gol é mais importante que o segundo. O terceiro mais que o segundo. E assim por diante.
É muito menos provável que um adversário consiga um empate – ou pior, uma virada – em um jogo com 3 a 0 a favor do que em relação a um simples 1 a 0. Isso se revela inclusive no fator psicológico do rival. Afinal, quantos são capazes de manter a concentração sofrendo um placar elástico, que periga ser ampliado ainda mais?
Também é bem menos provável que uma equipe atrás no placar e amplamente ameaçada na defesa ao longo de uma partida inteira, com posse de bola muito inferior, tenha chances de se recuperar. A tendência neste cenário é simplesmente sofrer mais gols.
Além disso, o esporte fica mais interessante. Quando duas equipes de nível técnico semelhante e proposta de jogo ofensiva se enfrentam, tudo fica imprevisível. É quando o espetáculo se estabelece.
Prova disso é o valor do Campeonato Inglês para a TV fechada brasileira – é o de maior audiência e tido como o mais valioso. Ao passo que o Calcio sequer possui transmissão.
O que os atores envolvidos no futebol brasileiro precisam entender é que uma equipe moderna não deixa de defender, apenas fazem de forma diferente. Primeiro, tendo a bola no pé e incomodando o adversário a todo momento. Segundo, sabendo lidar com transições entre os dois lados do campo.
Neste tipo de jogo, os defensores precisam ser velozes e especializados em leitura de jogo. Saber ocupar espaços com tomada de decisão rápida – normalmente os ataques adversários são sempre em contra-ataques velozes, explorando os espaços vazios deixados pela defesa.
E, claro: evitar ao máximo as devoluções de bola ao adversário, mesmo em situações apertadas. Ceder um lateral perto da área após um chutão traz a outra equipe para perto do seu gol. É uma falsa sensação de defesa e de alívio. Ao passo que um passe certo para um companheiro é o que efetivamente neutraliza a ação ofensiva do oponente.
Os goleiros agem na cobertura, se antecipando sempre que necessário, e funcionando como uma válvula de escape para defensores pressionados. Existe sim o risco dos famigerados gols de longa distância e também dos erros de passe: mas quantos gols assim os times de Guardiola e Klopp sofreram em toda a temporada?
Enquanto o conceito de defesa sólida por aqui for trocar um atacante por um volante no segundo tempo de uma vitória apertada, chamando o adversário para o seu campo de defesa sob chavões da imprensa como “saber sofrer” ou “pragmatismo”, nada mudará.
Enquanto as equipes que brigam por títulos fazerem contas para ser campeão mirando em quantidade de pontos e não em saldo de gols, saindo satisfeitas com aquele sonolento empate fora de casa contra um time que luta contra o rebaixamento, nada mudará.
Essas concepções só surgirão quando um time de filosofia moderna for campeão brasileiro. Nesse meio tempo, seguimos lendo algumas bobagens aqui na terra do 7 a 1.