Que o povo do Brasil cultiva uma relação diferente e especial com o futebol, parece não haver dúvida. Tanto é verdade que frequentemente utilizamos o ludopédio como extensão para muitos aspectos da vida e o incorporamos também na nossa linguagem cotidiana, de tal modo que ele representa a identidade e serve como medida para muitos torcedores.
É com base no referido campo cultural e tentando retratar o Brasil através do esporte bretão que a escritora e psicanalista Betty Milan elaborou o livro “O país da bola” (Record, 2014). Originalmente publicada em 1989 pela mesma editora, a obra ganhou sua terceira edição brasileira, com prefácio da autora, em virtude da última Copa do Mundo.
Nas 144 páginas que compõem o exemplar, Milan, com os atributos da seleção canarinho ideal que habita o inconsciente coletivo da nação, usa as palavras com a ginga de quem se diverte no jogo e a objetividade nascida no berço do improviso, que notabilizaram o futebol brasileiro, cujo legado prioriza a brincadeira e a estética antes do resultado.
Ironicamente, além da introdução, há SETE capítulos que demarcam o conteúdo do livro: “Futebol esperança”, “A copa perdida”, “Um país dividido”, “O país da bola”, “A primeira-dama”, “O Braaasilll” e “Palavras de campeão”. De premonitória essa divisão não teve nada, é óbvio. Mas aqui destaco duas bases importantes: a diversão e os dois Brasis.
Já evidenciava Euclides da Cunha o contraste entre os brasis, no caso o do sertão e o do litoral. Para Milan, o primeiro é o “Braaasilll” do futebol, democrático, perante o qual todos somos iguais e onde ninguém pode ser promovido a astro por decretos. Nesse aspecto, o jogador seria como o sambista, que não se faz pelo berço.
Na mesma extensão territorial vive também o Brasil das instituições, dos doutores, do oficialismo, da realidade que transformamos por meio do outro Brasil. Do primeiro nos orgulhamos; do segundo, nem tanto. Um é carregado de restrições dos mais variados aspectos; o outro, pertence a quem queira dele participar, assim como o Carnaval.
Quanto à diversão, trata-se do estilo típico do brasileiro, povo formado desde pequeno para criar, usar a imaginação, tratar a bola como uma amante, transformando em ciência, arte e dança essa brincadeira libertadora de jogar. Resultados vazios de nada valem sem dribles, belas jogadas e alegrias para o torcedor, metáfora que pode ser estendida para a vida.
Entre reflexões sociológicas e comparações culturais, “O país da bola” traz de maneira concisa e poética o importante debate sobre a formação e a identidade do futebol do Brasil e de seu próprio povo, sobretudo em um cenário no qual há escassez de talentos como os de outrora e a organização do esporte marcou alguns gols contras.